sábado, 17 de dezembro de 2016

Flannery O’Connor: querer ver a Lua inteira, passar de queijo a mística. Imediatamente.

Um Diário de Preces - um livro e uma encenação este Domingo, em Lisboa


Ilustração da capa de Um Diário de Preces (ed. Relógio d'Água)

“Meu bom Deus, não consigo amar-Te  como pretendo. És o crescente esguio de uma Lua que avisto, e o meu eu é a sombra da Terra que me impede de ver a Lua inteira.”
São palavras do início de Um Diário de Preces, da escritora norte-americana Falnnery O’Connor (1925-1964). O texto será encenado este Domingo, 18, na Capela do Rato, em Lisboa, a partir das 16h, numa encenação de Miguel Loureiro e interpretação de Isabel Abreu (mais informações aqui)
Um Diário de Preces é um texto curto, escrito na intensidade dos 22 anos de Flannery, que oscila “entre a metafísica e a terapêutica”. É um diálogo em luta com Deus e com as próprias contradições interiores, de quem se sente dividido entre aquilo que deseja ser e aquilo que realmente é. Mas também de quem tenta descobrir os verdadeiros desejos de Deus para si mesma. O mesmo Deus a quem Flannery se dirige, pedindo que a ajude a ser uma boa escritora, ou a saber como rezar ou a ser grata ou a adorá-l’O. Sobre a sombra que a impedia de ver a Lua, ela acrescentava: “Não te conheço, meu Deus, porque eu própria Te encubro. Por favor, ajuda-me a arredar-me do caminho.”
Flannery deixou vários 31 contos, dois romances – Sangue Sábio e O Céu é dos Violentos –, bem como muitas críticas literárias e ensaios. A sua obra de ficção está toda publicada em Portugal, nomeadamente na Relógio d’Água (que também publicou Um Diário de Preces) e na Cavalo de Ferro.
No prefácio obrigatório que escreveu à edição portuguesa deste Diário, Pedro Mexia recorda que a escritora “tinha uma sólida formação teórica”, que assentava em nomes como Tomás de Aquino e Romano Guardini, discutia o conceito de escritor católico – o que ele ou ela não deve fazer é “separar a natureza da Graça” – e manifestava, nos textos deste Diário, “a impaciência dos místicos”. No final, aliás, a última frase – “nada mais resta dizer acerca de mim” – assemelha-se ao “temperamento de Teresa d’Ávila”, escreve Mexia.
Há outras reminiscências. Como as que remetem para a possibilidade de ver Deus de forma intensa e permanente no quotidiano, ou para o pedido para que Deus se deixasse ajudar, ideias tão caras a Etty Hillesum, a judia que morreu em Auschwitz (autora de um Diário e de um volume de Cartas, ambos publicados na Assírio & Alvim, que relatam a sua aventura espiritual). Na penúltima entrada, escrita a 25/9/1947, escreve Flannery: “Se me cabe lavar todos os dias o segundo degrau, diz-mo e deixa-me lavá-lo até que o meu coração transborde de amor ao lavá-lo. Deus ama-nos, Deus precisa de nós. E também da minha alma.”
Em várias entradas do Diário, Flannery escreve sobre os quatro elementos de que a prece se deve compor: adoração, contrição, agradecimento e súplica. E também reza a propósito da fé, da esperança e do amor. Sobre a esperança, confessa sentir-se “um pouco perdida”. E pede, numa alusão a várias outras passagens em que se sente espatilhada e dividida por sentimentos contraditórios: “Por favor, deixa que alguma luz emane de todas as coisas que me rodeiam, para que me possa sentir coesa.”

Na entrada de 25/9, Flannery escreve, como quem dá uma ordem a Deus: “Aquilo que peço é, na verdade, bastante ridículo. Oh. Senhor, o que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente.”

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