sábado, 4 de abril de 2015

A água que brota do grande silêncio

Sábado Santo e a água como símbolo de fecundidade plena


Fédor Zubov, O Profeta Elias no Deserto 
(1672), Museu de Arte de Jaroslavl


Hoje, Sábado Santo, as liturgias cristãs – de modo especial a católica – assinalam o dia do grande silêncio. Os crentes contemplam o Cristo sepultado, mas experimentam, na aparência de uma derrota, a confiança na ressurreição. Como quem sabe que, mesmo no meio do deserto, há água que brota.
O profeta Elias – representado no ícone O Profeta Elias no Deserto, de Fédor Zubov – foi um dos que, na história bíblica, entendeu essa realidade. A seca atormentava o povo de Israel. Elias é então convocado por Deus, que queria “mandar chuva sobre a terra”, para manifestar que só ele era o verdadeiro Deus. E, depois de um despique com os sacerdotes de Baal, a chuva sobrevém e o povo volta-se de novo para o seu Deus. Antes, já o mesmo Elias recriara alimento na casa de uma pobre viúva que sofria asperamente os efeitos da seca e não tinha pão nem farinha.
Em ambas as histórias, Elias é aquele que acredita contra toda a lógica. A água virá, a fome acabará, mesmo se o deserto é que nos envolve – tal é o sentido da acção do profeta, narrada no livro bíblico de Reis.
A água é, na Bíblia, esse sinal da fecundidade plena. No início, conta o livro dos Génesis, já o Espírito de Deus pairava sobre as águas. No dilúvio de Noé, a água é o sinal da destruição mas também da purificação. Para fugir da escravatura no Egipto, os hebreus atravessam a pé enxuto o Mar Vermelho. Para os egípcios que tentarão perseguir os antigos escravos, a água será o seu cemitério, tornando-se sinal de liberdade plena.
Esta noite, na Vigília Pascal – a mais importante celebração do calendário litúrgico católico – os crentes recordam a água que fecunda a terra, que dá “frescura e pureza aos nossos corpos”. É dessa ideia que nasce o rito do baptismo. Na Vigília Pascal, celebra-se muitas vezes o baptismo de alguns e todos os crentes são aspergidos, recordando o dia em que cada um foi introduzido, pela água, na comunidade dos crentes. Como o viajante que passa por uma fonte: pára, refresca-se, descansa e retoma forças para o caminho. Como quem acredita que, entre os sinais da desesperança, é possível perscrutar o que os olhos não vêem.

(texto publicado no Público a 26 de Março de 2005)

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