sexta-feira, 4 de março de 2011

Evangelização ou proselitismo?

Acabam de ser divulgadas em Roma, em oito línguas, os Lineamenta ou documentos preparatórios do próximo Sínodo dos Bispos da Igreja Católica, convocado para 2012 pelo Papa Bento XVI e que será dedicado ao tema da "Nova Evangelização" (para ler a versão portuguesa, clicar aqui).
A propósito do "Patio dos Gentios", uma iniciativa de Roma que é uma outra frente deste plano de "nova evangelização", temos procurado introduzir aqui algumas questões em torno dos pressupostos e atitudes subjacentes a este empreendimento. O assunto é de grande importância, porque nele se joga o essencial da relação Igreja-Sociedade e, para recorrer à terminologia evangélica, o modo como a Igreja pretende ser hoje "sal da terra e luz do mundo".
Gostaríamos, de resto, que esta reflexão crítica fosse alargada a um amplo leque de pessoas interessadas e sensíveis a estas matérias, independentemente de se situarem ou não no espaço cristão e católico.
No sentido de alimentar essa reflexão e esse desejável debate, deixamos aqui dois contributos. O primeiro é proveniente dos próprios Lineamenta, que, no seu ponto 5, se refere ao significado da definição de "Nova Evangelização". O segundo é o extracto de um artigo publicado ontem no site do National Catholic Reporter pelo jornalista e vaticanista John C. Allen, justamente a propósito do documento.

1. Nova evangelização: definição
("Lineamenta", nº 5)

"«Nova em seu ardor, em seus métodos, em suas expressões». Não se trata de fazer de novo qualquer coisa que foi mal feita ou que não funcionou, como se a nova acção fosse um implícito juízo sobre o falhanço da primeira. A nova evangelização não é uma duplicação da primeira, não é uma simples repetição, mas é a coragem de ousar novos caminhos, para atender às mudanças de condições dentro das quais a Igreja é chamada a viver hoje o anúncio do Evangelho. (...)
Nesta acepção, o termo é retomado e relançado no Magistério do Papa João Paulo II, dirigido à Igreja universal. «A Igreja deve hoje enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo. A todos os cristãos, às Igrejas particulares e à Igreja universal, pede-se a mesma coragem que moveu os missionários do passado, a mesma disponibilidade para escutar a voz do Espírito»: a nova evangelização é, antes de mais, uma acção espiritual, a capacidade de assumir, no presente, a coragem e a força dos primeiros cristãos, dos primeiros missionários. É, portanto, uma acção que requer, em primeiro lugar, um processo de discernimento acerca do estado de saúde do cristianismo, o reconhecimento das medidas tomadas e das dificuldades encontradas. O Papa João Paulo II precisará mais adiante: «A Igreja deve dar hoje um grande passo em frente na sua evangelização, deve entrar numa nova etapa histórica do seu dinamismo missionário. Num mundo que, com o encurtar das distâncias, se torna sempre mais pequeno, as comunidades eclesiais devem ligar-se entre si, trocar energias e meios, empenhar-se juntas na missão, única e comum, de anunciar e de viver o Evangelho. “As Igrejas ditas mais jovens — disseram os Padres sinodais — têm necessidade da força das mais antigas, enquanto que estas precisam do testemunho e do entusiasmo das mais jovens, de forma que cada Igreja beneficie das riquezas das outras Igrejas”».
Estamos agora em condições de compreender o funcionamento dinâmico confiado ao conceito de “nova evangelização”: recorre-se a ele para indicar o esforço de renovação que a Igreja é chamada a fazer para estar à altura dos desafios que o contexto social e cultural de hoje coloca à fé cristã, ao seu anúncio e ao seu testemunho, como consequência das profundas mudanças em curso. A Igreja responde a estes desafios não cruzando os braços, não se fechando em si mesma, mas através do lançamento de uma operação de revitalização do seu próprio corpo, tendo colocado no centro a figura de Jesus Cristo, o encontro com Ele, que doa o Espírito Santo e as energias para um anúncio e uma proclamação do Evangelho através de novos caminhos, capazes de falar às culturas de hoje.(...)".

2. Termo que continua a ser difícil de definir
(John C. Allen)

Com toda esta ênfase na "nova evangelização" (...) o termo em si continua a ser difícil de definir. Comummente as perguntas que surgem incluem:
  • É a "nova evangelização" especialmente direccionada para o mundo ocidental, onde a fé tem estado desde há muito em declínio? Ou é uma iniciativa mais ampla, mais global?
  • É basicamente para atrair pessoas para a prática da fé - por outras palavras, para encher as igrejas aos domingos? Ou tem também por objectivo uma renovada capacidade de envolver os grandes temas culturais da actualidade, como o secularismo, o surgimento de uma economia global interligada, novos meios de comunicação e a revolução da biotecnologia?
  • Constitui a nova evangelização em grande parte um esforço dirigido ao exterior e, nesse sentido, como que uma "estratégia de saída" das várias crises e conflitos internos que recentemente minaram o mundo católico? Ou será que também inclui um exame de consciência interno, que se interrogue sobre se não haverá dimensões da vida da Igreja e do seu modo de pensar que representam obstáculos à evangelização?
Os Lineamenta para o próximo Sínodo fornecem respostas parciais a estas perguntas, deixando muito espaço para debate, durante o Sínodo e no mundo católico mais amplo.
Primeiro, os Lineamenta tentam introduzir alguma clareza conceptual. Distinguem três formas de evangelização:
  • A evangelização como uma "actividade regular da igreja" e, portanto, direccionada basicamente para os católicos praticantes;
  • O primeiro anúncio ad gentes, dirigido às pessoas que nunca foram cristãs;
  • Nova evangelização, que é "direccionada principalmente àqueles que se distanciaram da igreja [e] a pessoas baptizadas não suficientemente evangelizadas".
Na realidade, salienta o documento, dada a mobilidade social dos nossos dias e os padrões de migração, muitas vezes estes três grupos vivem no mesmo lugar, e as igrejas locais têm, por conseguinte, de ter estratégias para cada um. Como resultado, diz, pensar segundo critérios geográficos sobre a actividade missionária encontram-se ultrapassados.
"Hoje, cada um dos cinco continentes é campo da actividade missionária", nota.
Apesar desse quadro, no entanto, há pouca dúvida de que a Europa e os Estados Unidos constituem uma preocupação especial no documento - em parte porque é onde se encontra uma parcela bastante significativa dos "cristãos afastados". (...)
Em resposta à questão de saber se a "nova evangelização" diz respeito à transformação do mundo ou a levar mais pessoas para a Igreja, a resposta parece ser: as duas coisas.(...)
Nesse sentido, a "nova evangelização" poderia ser entendida como um esforço para concretizar a visão do cristianismo de Bento XVI como uma "minoria criativa", que não colapsa sobre si mesma.
"A nova evangelização é o oposto de auto-suficiência e de fechamento em si mesmo, da mentalidade do status quo e de uma visão pastoral que considera suficiente continuar a fazer como sempre se fez. Hoje, o “business as usual” já não basta, afirma-se nos Lineamenta.
Como distinguir a evangelização de proselitismo poderia ser precisamente um dos pontos de viragem no debate sinodal, em parte porque é isso que está no âmago de um número crescente de tensões na igreja.(...)"

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