sábado, 3 de outubro de 2009

Enzo Bianchi - Para uma ética partilhada

Fundador da Comunidade Monástica de Bose, Itália, no dia do encerramento do Concílio Vaticano II, Enzo Bianchi apresentou em Braga [na imagem] e em Lisboa o livro Para uma ética partilhada, editado pela Pedra Angular. Extracto:

“É num espaço de grande liberdade e, ao mesmo tempo, de gratuitidade que a fé em Deus se transmite: o ser humano, de facto, pode viver acreditando em Deus, como também pode viver sem esta fé, não há constrição alguma em ter de acreditar em Deus porque Deus não é o resultado de uma necessidade, não é ananké, ‘destino’. Talvez se afigure escandaloso também aos ouvidos de muitos ateus devotos que hoje pontificam, mas não há nenhuma necessidade mundana de Deus, nenhuma possibilidade de teísmo utilitário como, por vezes, gostaria de fazer crer uma sociedade carecida de ideais. O homem pode ser humanamente feliz sem crer em Deus, tal como o pode ser um crente: não é a fé em Deus que determina a felicidade ou a infelicidade de um ser humano. Aliás, já os rabinos tinham sagazmente concluído que Deus criou uma criatura capaz de lhe dizer: ‘tu não existes, tu não me criaste’. O ser humano é, pois, capax dei como é também ‘capaz’ de ateísmo. E nem sequer a fé em Deus é a única instância capaz de refrear a decadência moral, como por vezes dão a entender, não sem arrogância, os que afirmam que ‘se Deus não existe, reina a barbárie’: refinadíssimas culturas e religiões ‘sem Deus’ – pense-se no budismo ­não foram menos eficazes do que a cristandade em esconjurar ou em defender orientações e comportamentos mortíferos. Na verdade, segundo a grande tradição cristã, embora o homem não reconheça Deus e não seja crente, permanece sempre à sua imagem: pode negar a sua semelhança com Deus, mas a imagem é como um carácter impresso, de uma vez por todas, em cada ser humano.

Mas então, porque crer? Crê-se, adere-se ao Senhor, porque na busca de Deus, do bem, da felicidade, se aceita o dom da fé: esta é, de facto, dom e ‘não é de todos’, como recorda o apóstolo Paulo. Há homens que acreditam e homens que, de algum modo, não ‘podem’ acreditar, não por predestinação divina, mas porque não conseguem discernir e acolher a fé: esta permanece um acto de liberdade. Mas, então, que traz a fé a quem crê? Diga-se sem reticências: traz a esperança da vida mais forte que a morte, do amor mais forte que o ódio, de uma vida além desta vida. Esta é a especificidade do cristianismo: a fé na ressurreição, a resposta à pergunta que cada homem se faz: ‘que posso esperar?’

Penso, de algum modo, que a nossa reflexão ganharia em clareza, se não nos prendêssemos à questão sobre o ‘porquê’, mas indagássemos também o ‘para quê’, o espaço da finalidade. O crente, de facto, não deveria levantar apenas o problema dos motivos do seu crer – com o risco de reduzir a pergunta a uma questão de cálculo de custos e benefícios – e nem sequer das ‘raízes’, mas também dos frutos, do saber que dele fez, que dele faz em cada dia da sua fé, que ‘sinal’ põe de uma realidade invisível que os outros homens possam perceber só através de testemunhos visíveis e ‘credíveis’, autorizados porque autênticos. De bem pouco servem, efectivamente, proclamações solenes de convicções abstractas, se estas não souberem penetrar numa vivência humaníssima que dê testemunho da esperança na vida mais forte que a morte. Não se esqueça que a fé cristã nasceu e se desenvolveu através do testemunho de simples homens e mulheres, que tomaram sobre si o jugo leve de uma vida conforme à revelada por Jesus como a vida humana de acordo com o desígnio de Deus, uma vida rica de sentido e de amor, uma vida habitada pela solicitude para com o outro, uma vida autenticamente humanizante.

Sem dúvida, nem sequer o crente está imune à dúvida, à tentação - in primis à tentação da idolatria, do substituir à alteridade a obra das suas mãos, do negar o outro para impor o seu ego; também o crente conhece o risco da incredulidade como pouca fé, como não escuta da vontade de Deus, como treva do não sentido... Mas justamente esta sua experiência de contradição torna-o capaz de escutar as dificuldades do outro, de captar as perplexidades de quem não partilha a sua fé, de dizer uma palavra sincera que não mergulha a sua autenticidade num dogma, mas numa experiência, o torna capaz de dialogar na diversidade e no respeito das identidades singulares. Numa palavra, de ser testemunha daquele Jesus de Nazaré que ‘narrou Deus’ aos homens, tornando visível o invisível. Porque, hoje como sempre, os cristãos e todos os que para eles olham com simpatia ou com respeito não têm necessidade de depoimentos, mais de testemunhas”.

Para uma ética partilhada é uma proveitosa leitura para este início de Outubro.

1 comentário:

MISSAO disse...

Deus não se acredita. Deus vive-se.
O Sistema Socio-Politico-Religioso apresenta à Humanidade um Deus que eu não quero acreditar.
Deus é a “Brisa que eu respiro” irradiando a Harmonia Universal.
http://encontro12.blogspot.com