terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Sociedade Bíblica e difusão da Bíblia na construção da liberdade religiosa em Portugal



  A carroça da Bíblia. “Bible Van. Built of style of cart from Alemtejo province”. [s/d]. 
(In Photographs. Portugal – BSA/F2/5/2/7/7 – BFBS Archives – Cambridge University Library)

O papel da Sociedade Bíblica na construção da liberdade religiosa em Portugal durante a Monarquia Constitucional e a I República é o título do trabalho de Rita Mendonça Leite, vencedor do Prémio Liberdade Religiosa 2017, que ontem foi entregue no Ministério da Justiça, em Lisboa.
No trabalho (cuja conclusão se reproduz mais à frente), a investigadora do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), da Universidade Católica Portuguesa, pretende mostrar como a consolidação institucional da Sociedade Bíblica em Portugal e a sua integração nas dinâmicas religiosas e culturais do país, ao longo do século XIX e XX, se estruturaram sobre a actividade da divulgação bíblica. Um trabalho cujo início coincidiu com  a Guerra Peninsular e as Invasões Francesas.
Uma tal actividade, resume a investigadora, “definiu a instituição como um agente de mudança na sociedade portuguesa”, quer na “dinamização do processo de diferenciação religiosa em curso no país”, quer também na “promoção de um debate amplo, onde elementos antropológicos, teológicos e políticos se cruzaram”.
O projecto de difusão da Bíblia, liderado pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE) em Portugal, reflectia também “um conflito” que traduzia “o modo como a instituição progrediu no país enquanto expressão da modernidade contemporânea”. Reflectia também o modo como a Bíblia era “um espaço de confrontação onde os conceitos de Autoridade e de Liberdade, na sua variedade semântica, detinham um protagonismo fundamental”.
“Colocando o problema fundamental da Autoridade da Bíblia, a SBBE acabou inevitavelmente por se ver confrontada com o problema da autoridade no seu sentido mais estrito e concreto”, escreve ainda a investigadora do CEHR. Ou seja, esse confronto chegou também à relação “com as diferentes autoridades que, no seio da sociedade portuguesa, intervinham nos campos da regulamentação do religioso e, num sentido mais lato, na discussão sobre a liberdade religiosa e na ordenação societária”.
O prémio, que ainda atribuiu duas menções honrosas, é promovido pela Comissão de Liberdade Religiosa, que em breve promoverá a publicação do texto vencedor. Na acta do júri, destaca-se que o processo de selecção teve em conta, essencialmente, aspectos como “a focagem no problema da liberdade religiosa na sociedade portuguesa; o grau de pericialidade das metodologias utilizadas; o contributo para a construção do conhecimento; e o impacto social da investigação/reflexão”.
Na mesma resolução, o trabalho de Rita Mendonça Leite é considerado como “original e minucioso sobre fontes primárias”. Mas o júri destaca ainda “a competência da sua abordagem multiscópica a um fenómeno de diversificação religiosa na sociedade portuguesa”, como se pode ler na acta do júri.
Reproduz-se a seguir o capítulo de conclusão do trabalho vencedor:

A dinâmica de circulação bíblica como parte integrante e instância ativa na construção da liberdade religiosa em Portugal

Texto de Rita Mendonça Leite

Inevitavelmente condicionada pela agitação social e dificuldades financeiras que o país enfrentou durante a primeira fase da República, a atividade de circulação bíblica acabaria por conhecer na década de 20 [do século XIX] um verdadeiro ponto de viragem, conjugando a capacidade de trabalho e eficácia da equipa de colaboradores com o potenciamento de um processo de recomposição sócio-religiosa que procurou precisamente contrariar aquele ciclo de turbulência política continuada e que resultou num crescimento exponencial das vendas da SBBE em Portugal (A Agência da SBBE em Portugal fez circular desde o ano do seu estabelecimento, em 1864, e até 1940, 2 951 211 volumes bíblicos, sendo que se juntar a este número a circulação pré-Agência, se atingem os 2 976 979 exemplares difundidos. Entre 1920 e 1940 foram feitos circular 2 089 356 daqueles volumes, isto é, 70% do total).

Sendo claro que o entusiasmo inicial da SBBE em relação à I República portuguesa foi progressivamente matizado pela aplicação dos sucessivos programas governamentais e pelo impacto social e efeitos culturais dos mesmos, subsistiu sempre como dominante no discurso dos representantes da instituição em Portugal uma avaliação positiva das alterações substanciais promovidas pelo novo regime, reconhecidas como favorecendo em termos gerais a dinâmica da Sociedade Bíblica no país, o que acabou por se comprovar também naquele aumento extraordinário dos números da circulação.
Na perspetiva da SBBE, essa inter-relação não se resumia aliás à promulgação da liberdade religiosa e aos efeitos benéficos que esse reconhecimento teve no âmbito da dinâmica de difusão bíblica, estendendo-se também às consequências negativas que o processo revolucionário gerou, na medida em que a crise política e financeira acabava por potenciar a aproximação dos portugueses em relação a núcleos de apoio alternativos, designadamente os universos bíblico e evangélico, razão pela qual a SBBE concluía em 1926: «The country has continued to suffer from economic depression and violent political disturbances. In spite of this (and perhaps partly because of it) the circulation of the Scriptures in Portugal has reached a height never before attained and never, a few years ago, thought possible.» (The Hundred and Twenty-Second of the BFBS. London: The Bible House, 1926, p.49).
De facto, mais do que simplesmente beneficiar de medidas concretas proporcionadas pelas novas condições políticas, a instituição procurou ela própria, adaptar-se às novas circunstâncias, capacitando-se com novos recursos, expandindo os seus circuitos de intervenção e ampliando a sua área de influência, dinamizando também a sua própria recomposição e demonstrando uma capacidade de adaptação que, ao fim de mais de um século de trabalho no país, era reforçada como uma das suas principais marcas distintivas e, na verdade, como a sua grande mais-valia. Com a I República, tal como com a Monarquia Constitucional, a Sociedade Bíblica não se desenvolveu pois num ambiente de liberdade plena ou isenta de obstáculos, mas confrontou-se, de facto, com as circunstâncias que lhe permitiram atingir um grau de progressão – quer ao nível das vendas, quer ao nível da sua influência sociocultural – que nunca tinha atingido no seu percurso no nosso país.
A análise do percurso da Sociedade Bíblica em Portugal permite constatar que a realidade sócio-religiosa do Portugal do século XIX e primeira metade dos século XX é bastante mais complexa do que muitas vezes se procura demonstrar, expondo uma experiência social e cultural e múltiplas experiências pessoais que potenciaram um conjunto de fraturas, mas também de consensos, que dinamizaram o longo processo de secularização em curso, deslocando e recontextualizando na sociedade portuguesa um conjunto de elementos e pontos de discussão anterior ou simultaneamente associados a outros protagonistas e dinâmicas religiosas.
No decorrer do processo de construção da sociedade liberal em Portugal, que coincide cronologicamente com o da implantação da Sociedade Bíblica no país, o conceito de Verdade, tão caro àquela instituição e tão abertamente colocado pela sua atividade difusora foi acompanhado, e em certos contextos confrontado, com o conceito da Autoridade, mas também com as categorias da Liberdade e da Legitimidade. Neste campo, a dinâmica de recomposição que a sociedade portuguesa experienciou ao longo do séc. XIX e princípios do séc. XX foi também dinamizada precisamente pelo facto da noção de legalidade deixar progressivamente de ser, para alguns sectores da sociedade, sinónimo de legitimidade, denotando-se ao longo daquele longo período o desenvolvimento de atitudes de diferenciação entre aquilo que era considerado legal e o que se entendia como sendo legítimo. Nesse sentido e nesse contexto, a Sociedade Bíblica afirmou-se como instância ativa de regulação da sociedade portuguesa e como parte integrante do processo de dinamização e consolidação da liberdade religiosa em Portugal.


Colportores (distribuidores de literatura religiosa) António Gil e Emílio Ferrette (?), 
junto do Depósito Bíblico da SBBE, na Praça Luís de Camões em Lisboa;
(“Gil and Ferrari [sic]. BFBS Colps. And Bible Cart. Lisbon”. [s/d]. In Photographs. 
Portugal – BSA/F2/5/2/7/7 – BFBS Archives – Cambridge University Library)

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