sexta-feira, 25 de março de 2016

Lavar os pés, comer juntos e despertar um fogo


Ilustração: Bernadette Lopez, Berna, 
O lava-pés (5), reproduzida daqui

O Papa Francisco disse, quinta-feira à tarde, que o tráfico de armas é uma das razões dos atentados terroristas. Foi na celebração da Última Ceia de Jesus, durante a qual cumpriu o rito do lava-pés, um dos símbolos da Páscoa. Este texto fala desse símbolo, da refeição, da cruz e do fogo. Foi publicado na edição de hoje do Diário de Notícias:

O Papa Francisco celebrou ontem a liturgia do lava-pés, com um grupo de refugiados de vários países e religiões, incluindo muçulmanos e hindus. “Todos irmãos, filhos do mesmo Deus, que queremos viver em paz”, disse o Papa.
No final da cerimónia, no centro de acolhimento de Castelnuovo di Porto, 30 quilómetros a norte de Roma, vários cristãos coptas começaram a cantar. “É belo viver juntos, como irmãos, com culturas, religiões e tradições diferentes. Mas somos todos irmãos e isto tem um nome: paz e amor. Obrigado”, disse Francisco, antes de passar por todas as filas a saudar os refugiados, um por um, os quase 900 refugiados (incluindo 554 muçulmanos), de 26 nacionalidades.
Na homilia, o Papa referiu os atentados de Bruxelas: por trás do terroristas, estão também “os que fabricam e traficam armas”, que “querem a guerra”, disse. “Pobres daqueles que compram armas para destruir a fraternidade.”
Francisco ajoelhou depois perante oito homens e quatro mulheres: uma funcionária do centro, quatro nigerianos católicos, três ortodoxas da Eritreia, um hindu e três muçulmanos da Síria, Paquistão e Mali, regista a agência Ecclesia.
“Os gestos falam mais do que as imagens e do que as palavras”, disse, referindo depois o significado do lava-pés, um dos símbolos mais importantes das liturgias dos quatro dias de Páscoa: “Todos nós estaremos a fazer o gesto da fraternidade e dizemos todos que somos diferentes, distintos, com culturas e religiões diferentes, mas somos irmãos e queremos viver em paz.”

Foi a primeira vez que o Papa celebrou o gesto depois de, em Janeiro, ter decretado que a cerimónia passe a incluir também mulheres: apesar de ele sempre ter incluído mulheres, uma regra litúrgica instituía que o celebrante deveria lavar os pés a doze homens ou rapazes.

O símbolo: comer juntos

O lava-pés repete o gesto de Jesus realizado durante a ceia em que se despediu do grupo de seguidores. No texto do Evangelho de São João, o lava-pés é mesmo o grande gesto da despedida de Jesus, ao contrário do que acontece nos outros três textos – de Mateus, Marcos e Lucas.
A ceia é o outro símbolo maior destes dias e o centro da memória cristã de Jesus. Comer juntos uma refeição e fazer desse ritual um lugar religioso central não é exclusivo do cristianismo. A última ceia de Jesus era a celebração da Páscoa judaica, em que os hebreus celebram a libertação do regime de escravatura a que estavam sujeitos no Egipto dos faraós.
É também com uma refeição festiva que os muçulmanos terminam o Ramadão. E os sikhs recordam que, em 1649, Guru Nanak, seu mestre espiritual, deu de comer a muita gente, usando a fortuna que o pai lhe dera para gastar.
A última ceia de Jesus nasce de um desejo: “Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco”, disse Jesus, segundo os relatos dos evangelhos. A memória de Jesus faz-se, assim, à volta de um desejo e de uma refeição, o momento em que se estabelece a igualdade e os alimentos se transfiguram em fraternidade.
O pão repartido remeter, assim, para a entrega total ao outro e a partilha de tudo – incluindo da própria vida. Em Do Lugar do Pobre, escreve o teólogo brasileiro Leonardo Boff: “Não basta a busca de justiça para tornar a eucaristia autêntica. Jesus dá um passo além: a celebração pressupõe a superação das rupturas do tecido social e a reconciliação.”

O problema: comer com todos

“O problema era que Jesus comesse de qualquer maneira e com toda a espécie de pessoas”, escreve José Tolentino Mendonça. “Comendo com pecadores, Jesus praticava o Reino que estava proclamando”, acrescenta o biblista português, em A Leitura Infinita.
Este factor acaba por ser decisivo para o condenar à morte na cruz, que assume, com os séculos, o símbolo do despojamento pleno: para os crentes, é o próprio Deus que se anula para se entregar por todos. O filósofo Paul Ricoeur escrevia: “O único poder de Deus é o amor desarmado. Deus não quer o nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus torna-se ‘todo-amoroso’.” E, no século VI, Isaac de Nínive escrevia: “Deus só pode dar o seu amor.”
É essa a perspectiva que o Papa quis dar à via-sacra que, logo à noite, será celebrada no Coliseu. Memória do caminho de Jesus carregando a cruz até ao lugar da sua morte, a via-sacra de hoje irá recordar, de modo especial, os migrantes e refugiados, as perseguições religiosas, os judeus exterminados na II Guerra Mundial, as famílias em dificuldade, a precariedade laboral e os menores abusados.
A experiência e o símbolo da cruz completam-se, na liturgia cristã, com a ideia do fogo: a vivência da ressurreição de Jesus é, segundo os relatos das suas primeiras testemunhas, a de algo que lhes dá um fogo novo, uma energia redobrada. Por isso é que, na liturgia católica, a vigília pascal – que, sábado à noite, celebra a ressurreição – se inicia com a bênção do lume novo e com a oração do “precónio pascal”: este, em forma de história cantada, conta a força da luz na narrativa bíblica. Uma luz que vem para dar “alegria aos tristes, derrubar os poderosos, dissipar os ódios, estabelecer a concórdia e a paz”.

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Condenar os “actos de horror” - comentários de instituições e lideres religiosos aos atentados de Bruxelas

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