quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Visitação – Identidades partidas ao meio

Exposição


A identidade era dada por um pedaço de tecido, uma carta de jogar, alguma pequena fita, um bilhete de lotaria, medalhas ou alguma peça de joalharia. Metade ficava com a mãe, a outra metade acompanhava a criança deixada na roda. Desse modo se assegurava que mais tarde, quando eventualmente os pais pretendessem recuperar a criança, aquele contra-sinal poderia provar a paternidade.
Sinais de identidade pela metade. As crianças eram entregues na roda dos expostos, que se encontrava em misericórdias, mosteiros ou conventos. Na Misericórdia de Lisboa, em concreto, chegaram a ser recebidas, em média, cerca de 2600 crianças por ano (sete por dia), no início da segunda metade do século XIX, como recorda a reportagem de Rosa Ramos, no i de terça-feira passada, a partir da história de um desses sinais.
Os sinais são um dos aspectos da história da instituição criada em 1498, sob impulso da rainha D. Leonor, agora recuperados na exposição Visitação – O Arquivo: memória e promessa, que ainda pode ser vista até domingo, na nova sala de exposições temporárias do Museu de São Roque, em Lisboa. O arquivo é uma “forma de identificação”, escreve o curador da exposição, Paulo Pires do Vale, no (belíssimo) catálogo da mostra. “Olhar para um arquivo é olhar para uma identidade em construção – neste caso, a da Misericórdia de Lisboa.” Daí que o material selecionado conte “uma parte dessa história – porque a identidade é uma narrativa, sempre inacabada”. As fotografias de Daniel Blaufuks, feitas a partir de alguns desses sinais, dão uma nova identidade a essas identidades perdidas. 
Sinais de identidades são também as ortóteses preparadas para doentes do Hospital Ortopédico de Sant’Ana. Ou ainda os pobres que procuravam comida nas cantinas da Misericórdia. O rosto, portanto. De muitos rostos se faz a história da instituição – de quem pôde nela procurar alívio ou de quem ajudava outros. É de rostos que falam as Filhas do Fogo, projecções do cineasta Pedro Costa que acolhem o visitante, à entrada da exposição, ainda na nave central da igreja. “Nestes rostos, estão todos os rostos da história – estamos nós. Despojados e nus. Desarmados. O rosto, a sua presença, é a verdadeira Lei. Menos como interdito, mais como promessa de bem-aventurança”, escreve Paulo Pires do Vale no catálogo.
O itinerário da exposição completa-se com o Magnificat, ou a insubmissa voz, de João Madureira, peça musical que dialoga com o Magnificat de Filipe Magalhães (1571-1652) e que foi estreada na passada terça-feira com as vozes e os instrumentos do Officium Ensemble (e que se pode escutar de novo através do disco incluído no catálogo). Uma peça que, como escreve o compositor de Vento – Missa de Pentecostes, citando Sophia de Mello Breyner, retoma aquele que é “talvez o mais belo poema que existe”. Como uma voz, acrescenta, que “não cessa de nos interpelar, tanto é o que nos promete e o que vemos que, entre as nossas mãos, teima em não se cumprir”.

Visitação – O Arquivo: Memória e Promessa
Galeria de Exposições Temporárias do Museu de São Roque (Lisboa)

Até Domingo, das 10h às 18h
mais informações aqui

(textos anteriores neste blogue: um balanço do Sínodo dos Bispos sobre a família; um livro sobre os protestantes e católicos que tentaram evitar a I Guerra Mundial; um discurso do Papa pouco noticiado dizendo que a terra, o tecto e o trabalho são direitos sagrados)

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