domingo, 6 de abril de 2014

Miguel Ponces de Carvalho (1931-2014): fazedor de redes, apaixonado pela biologia e pela música

Obituário


(fotos António José Paulino)

Apaixonado pela biologia e pela música, exímio pianista, educador de gerações, o padre Miguel Ponces de Carvalho morreu sábado, dia 29 de Março, em Lisboa. Neste domingo, 6 de Abril, a sua memória foi evocada num encontro de amigos.
Era “um óptimo fazedor de redes”, diz, ao RELIGIONLINE, Luís Miguel Neto, professor universitário e um dos muitos amigos do padre Miguel, como era conhecido. Luís Miguel conheceu-o em Agosto de 1974, num acampamento de escuteiros no Gerês, que pretendia ajudar bombeiros e autoridades no combate aos fogos. Luís Miguel ia entrar no Serviço Cívico Estudantil, criado para que os estudantes fizessem a transição do secundário para o universitário.
“O padre Miguel falou-me na JUC [Juventude Universitária Católica], que estava a tentar lançar grupos no secundário. Ele tinha uma visão crítica das coisas mas, entre as discussões acaloradas que tínhamos entre os mais novos, ele era uma referência de ponderação.”
Tinha sido nesse contexto do contacto com gente mais nova que António José Paulino conhecera o padre Miguel, ainda em 1973. “Ele era assistente nacional da JUC e estava a organizar um encontro para os mais jovens.”
Nessa altura, o padre Miguel, melómano e exímio tocador de piano, já se dedicava muito à música e à ópera. “Esse gosto musical e essa jovialidade davam-lhe uma grande proximidade com os mais novos”, recorda Paulino, engenheiro electrotécnico.

Gerações de estudantes

As canções de Jacques Brel eram citadas com frequência pelo padre Miguel, mas as suas paixões musicais eram muito largas e intensas. Isabel Sassetti recorda que, ainda criança, o seu pai e Miguel Ponces de Carvalho, que eram muito amigos, passavam horas a tocar piano e cantar. “O padre Miguel compôs uma peça em que contava a criação do mundo, segundo o relato do Génesis”, recorda.

A sua dimensão de educador de gerações foi evocada por José Pedro Castanheira no Expresso. Recorda o texto (que pode ser lido aqui na íntegra): “Ajudou a formar várias gerações de estudantes universitários católicos, entre os quais se incluiu o ex-primeiro-ministro António Guterres, os ex-ministros Roberto Carneiro (Educação), Pedro Roseta (Cultura) e Amílcar Teias (Ambiente), ou o ex-candidato presidencial da UDP, Carlos Marques. Privaram ainda com o ‘padre Miguel’, como todos o conheciam e gostava de ser tratado, o ex-alto comissário para a imigração, José Leitão, o cirurgião Queirós e Melo, o ensaísta e professor Onésimo Teotónio Almeida, a ex-vereadora Helena Roseta e nomes ligados às tecnologias, como José Tribolet e Manuel Collares Pereira.
Na mesma linha, o professor universitário José Manuel Pureza evocou a figura de Miguel Ponces de Carvalho num texto que publicou na sua página de Facebook: “Todos somos construções, é sabido. Fazemo-nos nas tensões e nas comunhões com outros/as. Miguel Ponces de Carvalho, padre, homem de ciência mas sobretudo de sabedoria, melómano, operário do diálogo entre culturas, fez-me. A mim e a gerações de estudantes crentes. Partiu ontem para aquele reino que anunciou sem facilitismos e que ajudou a construir nas nossas vidas. Continuar essa construção exigente e crítica foi a herança que me/nos deixou.”
António José Paulino recorda que o padre Miguel acabou por influenciá-lo também na descoberta do gosto pela leitura de policiais e num outro pormenor: “Um dia, numa reunião de grupo, ele disse-me para ir com ele lavar a louça, porque era uma forma de descontrair. Fui e ainda hoje o lavar a louça é uma maneira de descomprimir, aprendi isso com ele.”
Para lá disso, o padre Miguel ainda deu apoios mais decisivos: Paulino recorda que, no segundo ano do Técnico, estava com problemas para pagar os estudos. O padre Miguel falou com um amigo e arranjou-lhe forma de fazer um pequeno trabalho para ter algum dinheiro.

Os verdes anos

Luís Miguel Neto diz que o convívio com o padre Miguel foi “um amadurecimento muito bom dos verdes anos”. Uma das coisas de que se recorda é uma conversa animada e profunda, entre o padre Miguel e o padre João Resina, que era professor no Instituto Superior Técnico, sobre a natureza da ciência.
“Eu estava a entrar no ISPA”, Instituto Superior de Psicologia Aplicada. “E tive essa oportunidade de ouvir pessoas falar sobre questões importantes, sem ser numa conversa de cassete.”
Formado em Biologia, Miguel Ponces de Carvalho tinha de facto nessa área uma das suas outras paixões. Nascido em Bolama (Guiné-Bissau), em 1931, Miguel Ponces de Carvalho viveu na então Rodésia do Sul (actual Zimbabué), antes de vir para Portugal, aos oito anos. Matriculou-se ainda na Faculdade de Medicina, mas a sua adesão à JUC levou-o a entrar no Seminário dos Olivais. O estudo das ciências só regressaria mais tarde, já depois de ter sido ordenado padre pelo cardeal Cerejeira, em 1958. Matriculou-se desta vez na Faculdade de Ciências, para fazer Biologia, ficando depois durante alguns anos a leccionar História e Filosofia das Ciências.
Num texto sobre A origem e evolução da vida – novas perspectivas e reflexão cristã,  publicado na revista Communio, em 1998 (nº V), escrevia: “Compreender as origens é necessário para uma inteligência cada vez mais actuante na Terra e até no Universo. (...) Ora há 3500 milhões de anos aconteceu na Terra a Vida: sistemas energéticos capazes de utilizar com progressiva eficácia a energia que o Universo lhes fornece. Serão os seres vivos parasitas ou simbiontes dos restantes seres? A resposta encontra-se no homem, ser vivo extremamente eficaz, ‘para o bem e para o mal’, com capacidade de investir na Evolução ou na Involução desse Universo.”
No mesmo artigo, acrescentava, sobre a responsabilidade humana com o desenvolvimento científico: “Se o homem é resultado da história do Universo é também responsável pelo futuro do Universo e muito especialmente da Terra. A sua actividade há-de reger-se pelas necessidades energéticas e por imperativos éticos. A utilização de fontes de energia, sem referências éticas, corresponde a parasitismo. Só uma ética baseada na liberdade e na responsabilidade solidária fará do homem um simbionte de todo o Universo.
Ecologia-ética, um domínio a desbravar.
 Para isso, utilizando a nomenclatura de Teilhard de Chardin, é necessário valorizar e amar o Homem e a Natureza, a que ele pertence, de que depende e em que actua.”

Educação intercultural, educação para as diferenças



A sua paixão pela Biologia levou-o a dar aulas também no ensino secundário (onde já tinha estado, logo depois de ser ordenado, como professor de Religião e Moral). E foi na sequência da sua actividade lectiva e do seu gosto pela educação, que Roberto Carneiro, enquanto ministro da Educação, o chamou para o Secretariado Entreculturas (SE) – primeiro como secretário executivo, depois como presidente.
O novo organismo, criado em 1991, pretendia executar programas educativos na linha da aprendizagem conjunta – pensando essencialmente em descendentes de emigrantes e do meio milhão de deslocados das ex-colónias, que tinham vindo para Portugal em 1974-75, recorda Isabel Ferreira Martins, que trabalhou com o padre Miguel no SE.
“Era uma pessoa com uma sensibilidade grande para com as ciências naturais”, diz esta técnica do Ministério da Educação. “A educação intercultural fazia-lhe eco do ponto de vista da construção das diferenças, mesmo a partir da biologia.”
No boletim do SE, Diálogo Entreculturas, escrevia em Outubro de 1998, a propósito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que esta “afirma com toda a clareza as diferenças existentes entre todos os seres humanos. E em Janeiro de 1996, na mesma publicação, já registara: “Todo o acto pedagógico correcto é, assumamo-lo ou não, intercultural. Todo o sistema educativo é necessariamente multicultural.”
Conversador, artista, um “esteta”, funcionava muito como professor e menos como padre, diz ainda Isabel Ferreira Martins, o que também lhe granjeou o respeito de diferentes responsáveis políticos e ministeriais. E que fez com que, extinto o SE em 2005 e integradas as suas competências no então ACIME (Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas), o padre Miguel fosse logo a seguir colocado como responsável (entre 2005 e 2007) da nova Estrutura de Missão para o Diálogo com as Religiões – que, por sua vez, seria depois integrada no ACIDI (Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural). Esta sua dedicação ao diálogo intercultural levou-o a estar presente na criação, em 1993, da Associação de Professores para a Educação Intercultural, da qual foi o sócio número 1, como recorda Isabel Ferreira Martins.
Sempre um fazedor de redes e de pontes, o padre Miguel exerceu ainda múltiplas funções eclesiais, entre as quais as de pároco de Campolide, São Mamede e Lapa-Estrela.

(aqui pode ler-se um outro perfil do padre Miguel Ponces de Carvalho; agradece-se a Camila Ferreira e Maria Ângela Branco pela colaboração na pesquisa de textos)

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