segunda-feira, 14 de abril de 2014

D. José: Uma voz tranquila no palco da democracia

Texto de António Marujo e Jorge Wemans


É hoje posto à venda o livro D. José Policarpo – Uma Voz Tranquila no Palco da Democracia (ed. Paulinas). Nele se recolhe uma entrevista que ambos fizemos ao então novo patriarca de Lisboa, em 1999, por altura dos 25 anos do 25 de Abril de 1974. Quinze anos depois, a entrevista mantém plena actualidade, pois os temas tratados – a democracia, o Estado social, o papel da Igreja na sociedade pluralista – estão agora, mais do que nunca, no centro do debate político e social.
Nessa entrevista, D. José apontava o 25 de Abril como um dos três momentos marcantes na história de Portugal – a par da fundação da nacionalidade e do ciclo das Descobertas. E admitia também, pela primeira vez, que pudesse haver mulheres ordenadas, na sequência de um processo de amadurecimento e discernimento no interior da Igreja.
Aqui pode ler-se uma notícia, dois excertos e o índice do livro.
A seguir, fica o esboço de um perfil da figura de D. José Policarpo.


Não foi um caminho fácil

Nem sempre o caminho foi fácil. Era o que ele dizia ao fazer o balanço da relação da Igreja com a sociedade nas últimas três décadas do século XX. Mas a síntese pode aplicar-se à vida e obra do próprio José da Cruz Policarpo, patriarca de Lisboa entre 1998 e 2013. Alguns dos momentos marcantes que protagonizou enquanto padre, bispo ou patriarca confirmam essa sua percepção de um caminho difícil. Perante os conflitos, os imperativos de consciência, as crises institucionais e as questões de fronteira procurou manter um estilo apaziguador servido pelo seu modo civilizado, culto, fluente. Ao contrário do que seria de esperar de um homem intelectualmente respeitado, evitou as rupturas e deixa sobretudo uma herança marcada por uma gestão à procura de equilíbrios e consensos. O que não significa que alguns dos seus gestos não tenham sido polémicos.
Um dos últimos episódios simbolizou alguns aspectos da sua acção, pensamento e carácter. Em Julho de 2011, quatro meses depois de completar 75 anos e de a Santa Sé lhe ter solicitado que continuasse como patriarca de Lisboa por mais um tempo, o patriarca de Lisboa recebeu uma carta do cardeal William Levada, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano, com uma séria reprimenda. Em causa, estava a afirmação de D. José, numa entrevista à revista da Ordem dos Advogados (OA), de que “não há nenhum obstáculo fundamental” à ordenação de mulheres. A carta do Vaticano obrigou-o a retractar-se publicamente: seria “doloroso” que tais palavras “pudessem gerar confusão” na adesão “à Igreja e à palavra do Santo Padre”, escreveu. O recuo foi notado ainda mais por se saber que, um mês antes, um bispo australiano tinha sido demitido por ter defendido a mesma opinião. E o Vaticano não hesitaria em novo castigo, mesmo perante um cardeal e patriarca.

A opinião de D. José Policarpo sobre este e outros temas reflectia o seu desejo de abrir a Igreja à sociedade contemporânea. Mas, perante alguns obstáculos, ele preferia não avançar (ou recuar, como neste caso), sobretudo se entendia que isso poderia criar fracturas graves no interior da comunidade cristã. Mesmo em relação ao poder político, preferia conversar nos bastidores em vez de fazer críticas públicas – foi ele, por exemplo, que tentou apaziguar as críticas de vários bispos a algumas medidas sociais do Governo presidido por José Sócrates.
No caso da ordenação de mulheres, a primeira vez, aliás, que ele defendera publicamente aquela ideia, tinha sido em 1999, precisamente neste livro que agora é reeditado. Com um ano no cargo, afirmava: “Que [as mulheres] eram capazes – as que tivessem vocação para isso – não tenho dúvidas. (...) As razões pelas quais a Igreja Católica não se abriu ainda a essa hipótese são sobretudo as da tradição apostólica, que foi sempre de homens.” E acrescentava: “Terão de ser as comunidades e a Igreja, como um todo, a amadurecerem o assunto. É um facto que hoje, mesmo dentro da Igreja Católica, se aceitam mulheres em papéis que há trinta anos eram impensáveis.”
A mesma ideia foi repetida em Maio de 2003, em Viena de Áustria, numa conferência de imprensa do Congresso Internacional para a Nova Evangelização. Na entrevista de 2011 ao boletim da OA, o patriarca citava uma carta do Papa João Paulo II, de 1994, sobre o assunto, e um esclarecimento, um ano depois, da Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI. Os dois textos diziam que o tema pertencia ao “depósito da fé”. Mas D. José contestava: “Penso que a questão não se dirime assim; teologicamente, não há nenhum obstáculo fundamental; há esta tradição, digamos assim... Nunca foi de outra maneira.” E acrescentava, quase adivinhando o que iria suceder: “No momento que estamos a viver, é um daqueles problemas que é melhor nem levantar... Suscita uma série de reacções. [A mudança acontecerá] se Deus quiser que aconteça, e se estiver nos planos Dele acontecerá.”
Percebe-se, pela constância das afirmações, qual era a opinião de D. José sobre o tema. Mas a pressão hierárquica e o seu desejo de não abrir um conflito grave com a Santa Sé falaram mais alto. Casos houve, no entanto, em que D. José Policarpo tomou decisões que não mereceram o acordo de um sector de responsáveis do patriarcado, mas que ele assumiu até ao fim.
Foi assim com o casamento canónico de vários padres que tinham deixado o ministério em conflito com a hierarquia, a cuja celebração ele presidiu – o mais conhecido foi o padre José Felicidade Alves, que tinha rompido com o cardeal Cerejeira – depois de ter ido pessoalmente ao Vaticano desbloquear o processo de dispensa do ministério. Aconteceu o mesmo com o pedido de perdão à comunidade judaica, pelo massacre de judeus acontecido em Lisboa em 1506. Fê-lo durante o encontro da Comunidade de Santo Egídio em Lisboa, em Setembro de 2000. E foi assim ainda com a escolha pessoal do padre Agostinho Jardim Gonçalves para seu chefe de gabinete, apesar de aquele ter sido marginalizado durante anos pela hierarquia católica portuguesa – e nomeadamente pelo anterior patriarca, António Ribeiro.

Diálogo inter-religioso e sinais dos tempos


(foto reproduzida daqui)

Nascido no Pego (Alvorninha, Caldas da Rainha), a 26 de Fevereiro de 1936, José da Cruz Policarpo (+ 12 de Março de 2014) era o mais velho de nove irmãos. Ordenado padre em Agosto de 1961, partiu depois para Roma, onde se licenciou em Teologia Dogmática na Universidade Gregoriana, com uma tese sobre as religiões não-cristãs (1968). A abertura ao diálogo inter-religioso seria uma das marcas dos seus anos de patriarca. Foi por sua iniciativa que o patriarcado criou um Departamento pata o Diálogo Inter-Religioso, uma realidade nova num país marcado até há pouco tempo pela grande predominância do catolicismo maioritário.
Foi também nesse quadro que a Comunidade de Santo Egídio, de Roma, realizou em Lisboa o seu encontro anual inter-religioso, em Setembro de 2000. O acontecimento foi aproveitado pelo patriarca para a cerimónia de pedido de perdão aos judeus pelo massacre de que a sua comunidade tinha sido vítima, em 1506. A evocação foi presidida por D. José no mesmo Largo de São Domingos onde começou o massacre, tendo na ocasião sido inaugurado um pequeno memorial da tragédia, pago com dinheiro do patriarcado – facto que não agradou a alguns membros do clero de Lisboa.
Apesar dessa abertura ao diálogo inter-religioso, o patriarca fez polémica, em Janeiro de 2009, num debate na Figueira da Foz, ao declarar que as jovens portuguesas deviam pensar duas vezes antes de casar com um muçulmano, pois isso poderia trazer-lhes “um monte de sarilhos”.
Na Universidade Gregoriana, com pouco mais de 30 anos, José Policarpo doutorou-se ainda com uma tese sobre a expressão evangélica que o Vaticano II recuperara: Sinais dos Tempos – Génese Histórica e Interpretação Teológica, publicada em 1971 e que pretendia fornecer chaves de leitura da presença de Deus na realidade. O seu autor justificava, numa ideia que lhe era cara: “Há, no tempo, sinais da acção salvífica de Deus, porque a salvação de Deus se objectiva na história. (...) A salvação é história, tanto por parte de Deus como por parte do homem. Por parte de Deus, ela é história porque se funda num acontecer da liberdade divina; ela é história por parte do homem, porque a sua aceitação e abertura transcendental a essa comunicação de Deus se exprimem através das concretizações da sua existência histórica.” (1)
Na reedição da obra, em 2003, o autor anotava que a Igreja tivera de deixar de se considerar apenas como “aquela que julgava, condenando erros, denunciando desvios, apresentando com clareza a verdade eterna”, obrigando-se a ter “um olhar novo, marcado pela esperança, sobre o mundo e sobre a história”. Mundo e história que passaram a ser encarados como “campo da acção transformadora do Espírito de Deus” (2).
No regresso a Lisboa, em 1970, o padre Policarpo passou a dirigir o Seminário dos Olivais (até 1997), ainda a viver as consequências da crise que levara à saída de vários padres da equipa formadora (Felicidade Alves, Abílio Cardoso e outros). Tinham restado onze seminaristas e o padre Policarpo teve de refazer a equipa e dar nova consistência à formação dos alunos. Entre 1974 e 1980 (e, de novo, de 1985 a 1988), foi escolhido como director da ainda jovem Faculdade de Teologia, para ajudar a credibilizar a escola. Não por acaso: a tese sobre os sinais dos tempos marcara um certo retorno do pensamento teológico ao mundo português, depois da sucessão do ensino teológico em 1910, e da crise dos anos 1960, quando a criação da Universidade Católica e da respectiva Faculdade de Teologia acabou por liquidar a existência do Instituto Superior de Estudos Teológicos, que tinha sido fundado por diversas congregações religiosas.
Ainda em 1974, participaria como perito no Sínodo dos Bispos, em Roma, acompanhando o cardeal Ribeiro, na reflexão sobre a evangelização, que viria a ser outro mote da sua reflexão. Na sequência dessa participação, publicou em 1975 o livro Evangelização, Anúncio de Liberdade
Já em 1978, o padre Policarpo foi nomeado bispo auxiliar do cardeal-patriarca D. António Ribeiro. Já nessa qualidade, foi chamado a mais duas tarefas exigentes: reitor da Universidade Católica (1988-96) e presidente do nascente projecto da televisão da Igreja. Num e noutro lugar, a sua pouca disponibilidade para a gestão económica de instituições não terá dado os melhores resultados. E, no caso da televisão, acabou mesmo por deixar o projecto, confessando, em 1998, que a nascente TVI não correspondia ao que sonhara.

Abertura à sociedade e relevância cultural

Arcebispo coadjutor com direito a sucessão em 1997, passou a patriarca em 1998, por morte de D. António Ribeiro. Nomeado cardeal por João Paulo II em 2001 (no mesmo consistório do cardeal Bergoglio, actual Papa Francisco), participou nos conclaves de 2005 e 2013 e desempenhou vários cargos no Vaticano, entre os quais o de membro do Conselho Pontifício da Cultura.
Por contraste com o seu antecessor, extremamente tímido, D. José apareceu logo desde o início com grande à-vontade em qualquer papel público ou no lugar de entrevistado nos média. Iniciado o mandato como patriarca, a atenção ao mundo e à realidade que a leitura dos sinais dos tempos apontava marcou desde logo várias das suas iniciativas. Criou o inexistente gabinete do patriarca, iniciou o ciclo das catequeses quaresmais nos domingos anteriores à Páscoa e passou a dinamizar encontros com responsáveis e académicos ligados a diferentes sectores sociais e culturais. O seu objectivo era tomar o pulso à realidade, de modo a que a acção da Igreja fosse mais eficaz. Crentes e não-crentes que trabalhavam em áreas como a política, economia, ambiente, edição literária, jornalismo ou imigração foram convidados a reflectir em conjunto com D. José.
Durante o ano 2000, promoveu também um conjunto de iniciativas sob o mote do “jubileu”, com debates abertos à sociedade – incluindo artistas, intelectuais e jornalistas. Também com a mesma preocupação de se abrir ao diálogo social e cultural, trocou cartas com Eduardo Prado Coelho nas páginas no Diário de Notícias, no final de 2003, o que deu origem ao volume Diálogos Sobre a Fé, publicado no início de 2004.
Em debates da sociedade portuguesa como os relativos ao aborto ou ao casamento de pessoas do mesmo sexo, reafirmou a tradição católica sem fazer afirmações azedas ou extremadas e não recusando que o Estado tivesse uma posição diferente da Igreja. Aliás, apoiou discretamente padres que, no patriarcado, acolheram grupos de homossexuais nas suas paróquias ou instituições, mas não queria que isso fosse publicamente conhecido. E recusou apoiar os que, na Igreja, pretendiam que o confronto dos bispos ou dos católicos com o poder político a propósito dos temas da moral fosse mais público e combativo – de novo, a sua preocupação pelo menor grau de conflito possível a vir ao de cima. Neste campo, o deslize mais importante aconteceu já em 2012 quando, na véspera de dezenas de manifestações de rua contra a austeridade, afirmou que os protestos de rua significavam “uma corrosão da harmonia democrática” e que “não se resolve nada contestando ou vindo para manifestações”, mas acrescentando que os problemas existentes no país só podem ser resolvidos no âmbito europeu.
A este deslize também não terá sido estranho o facto de, nos últimos anos de patriarca, muitas pessoas terem notado um certo arrefecimento do entusiasmo inicial. O ar de D. José aparentava, muitas vezes, um cansaço do cargo e as iniciativas de maior abertura à sociedade deixaram de acontecer.

Relação difícil com os seus pares

Oscilando entre o bom humor e o temperamento difícil, não teve convivência fácil com alguns dos bispos que escolheu e que tinham um trajecto pessoal mais vincado, preferindo sempre pessoas que não lhe fizessem muita sombra. Em certas ocasiões, chegou mesmo a acusar publicamente essa dificuldade de convivência ou criticou, ainda que de forma velada, algumas afirmações de colegas do episcopado. Mesmo assim, manteve-se como um dos nomes de mais prestígio entre o episcopado. Por isso, não foi surpresa o facto de ter sido eleito para presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) por dois mandatos, entre 1999 e 2005 e, depois, entre 2011 e 2013.
Em 2005, por sua vontade, a CEP teria alterado os estatutos para que ele pudesse cumprir um novo mandato. Mas os bispos não lhe fizeram a vontade e, para algumas pessoas, esse foi o início do processo de esfriamento que se viria a verificar. E a última eleição para o cargo tão pouco esteve isenta de críticas: o cardeal propôs-se claramente para o lugar, evitando assim a eleição previsível do então bispo do Porto e actual patriarca de Lisboa, Manuel Clemente.
 Enquanto presidente da CEP, foi também o responsável da última fase das negociações entre Portugal e a Santa Sé para a revisão da Concordata. O processo tinha sido, no entanto, impulsionado pelo antigo bispo de Coimbra, D. João Alves, durante o seu mandato como presidente da Conferência.
No âmbito internacional, e além do encontro da Comunidade de Santo Egídio em 2000, o patriarca dinamizou ainda, com os arcebispos de Paris, Viena, Budapeste e Bruxelas, o Congresso Internacional para a Nova Evangelização. Realizado entre 2002 e 2007, a ideia ficou aquém das expectativas criadas, pois acabou por ficar muito marcada (na etapa de Lisboa, em 2005) pela procissão da imagem de Nossa Senhora de Fátima, precisamente uma das formas mais tradicionais de evangelização. Diferente foi o acolhimento, em Lisboa, em 2004, do encontro europeu de jovens promovido pela comunidade monástica de Taizé, onde participaram uns quarenta mil jovens de toda a Europa e que marcou uma nova abertura de muitos católicos do patriarcado à realidade ecuménica europeia. Acolheu dois papas em Lisboa: João Paulo II, no ano 2000, e Bento XVI que, enquanto Joseph Ratzinger, dizia ser o seu modelo de pensamento (ver entrevista em apêndice).
A reflexão de D. José foi-se situando entre uma Igreja identificada e com princípios e, ao mesmo tempo, aberta à realidade, aos sinais dos tempos e à novidade de um Deus objectivado na história, como ele escrevia em Sinais dos Tempos. Pensador de referência, líder da estabilidade, pragmático, bom conversador, fez do diálogo cultural uma opção, mas terá preferido não arriscar demasiado.
Na homilia da Vigília Pascal de 1999, o patriarca citava dois hinos da liturgia das horas e afirmava: “[A] luz de Cristo é, para nós, o tesouro escondido, mas que já brilha; devemos defendê-la, pedi-la, merecê-la. Esta luz de Cristo ressuscitado guiar-nos-á nos caminhos difíceis da vida: ‘Se me envolve a noite escura /e caminho sobre abismos de amargura / nada temo porque a Luz está comigo.’ É ela que nos atrairá, continuamente, para novas paisagens de claridade, por isso a Igreja reza, na serenidade de cada entardecer: ‘Luz terna, suave, no meio da noite / Leva-me mais longe... / Não tenho aqui morada permanente. / Leva-me mais longe!’” (3)
Terá ido mais longe D. José Policarpo, pelos caminhos difíceis da vida.

Notas
(1) – J. da Cruz Policarpo, Sinais dos Tempos – Génese Histórica e Interpretação Teológica, ed. Sampedro, Lisboa, 1971, p. 189
(2) D. José Policarpo, Obras Escolhidas, I volume, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003

(3) E a Luz venceu as Trevas, homilia da Vigília Pascal de 1999, in Pai Nosso – Uma Oração que Compromete, ed. Grifo, Lisboa, 1999

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