sexta-feira, 31 de maio de 2013

Desemprego, fome e crianças (e uma oração do Papa pelos que sofrem)

Hoje, no dia em que se soube que o desemprego atingiu novos máximos históricos em Portugal (e na Europa...) vale a pena ler o que dizia o cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, em Buenos Aires, Páscoa de 2002 (texto citado no livro Papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio, ed. Paulinas):
“A história marcou a fogo no nosso povo o sentido da dignidade do trabalho e do trabalhador. Existe algo mais humilhante do que a condenação a não poder ganhar o pão? Existe forma pior de decretar a inutilidade e inexistência de um ser humano? Pode uma sociedade, que aceita tamanha iniquidade, escudando-se em considerações técnicas abstractas, ser caminho para a realização do ser humano?”

No próximo domingo, o Papa presidirá, no Vaticano (a partir das 16h de Lisboa) a um tempo de oração que pretende marcar o dia do Corpo de Deus (ontem). A iniciativa pretende fazer uma corrente de oração em todo o mundo, à mesma hora, tendo em atenção sobretudo aqueles que, “nos mais diversos locais do mundo, são vítimas da guerra, do tráfico de seres humanos, da droga e do trabalho escravo”. E também recordando o sofrimento das crianças, bem como “todos os que enfrentam situações de precariedade económica, principalmente os desempregados, os idosos, os imigrantes, os que não têm um lugar para viver, os presos e aqueles que caíram na marginalidade”.

Desta quinta-feira, vem a notícia da intervenção do observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, Francis Chullikat, considerando urgente a adopção de políticas que permitam combater a fome, que atinge “quase mil milhões de seres humanos” e apontando a falta de acesso á alimentação e à água como “um escândalo e uma crise não apenas humanitária, mas também “moral”. 

Hoje, a propósito do Dia Mundial da Criança que se assinala neste sábado, a Cáritas Europa pediu, em comunicado, que a União Europeia e os seus estados-membros dêem prioridade ao combate à pobreza em que vivem (ou arriscam viver) 25 milhões de crianças. Ou seja, uma em cada quatro crianças vive exposta a situações de pobreza. Aqui pode ler-se na íntegra o comunicado da federação europeia das Cáritas.

Joaquim Franco distinguido por reflexão sobre o fenómeno religioso no mundo contemporâneo

O jornalista e investigador em Ciência das Religiões Joaquim Franco, um dos autores deste blogue, venceu o Prémio “Consciência e Liberdade 2013”, atribuído pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) a trabalhos sobre a liberdade religiosa na lusofonia”. O júri considerou que o ensaio, intitulado Da liberdade religiosa à urgência do diálogo – a experiência contemporânea, faz uma “reflexão fundamentada e original sobre a importância do fenómeno religioso no mundo contemporâneo”. A cerimónia de entrega do prémio realizou-se na Universidade Lusófona, em Lisboa, no dia 28 de Maio. Excertos da intervenção do premiado:

(...) [Na comunicação social, o fenómeno religioso] Merece ter gente preocupada com a especialização e o aprofundamento, o conhecimento e a actualização, como acontece noutras áreas. Não apenas para a tão necessária e difícil descodificação das linguagens e dos contextos, mas para o seu real enquadramento na dimensão humana.
De facto, alguns acontecimentos só ganham relevância com ampliação mediática. Mas há também quem aproveite a lógica da comunicação global para dar a determinado acontecimento a relevância que, na realidade, não tem.
Foram os casos das “caricaturas” de Maomé em 2005 publicadas num jornal dinamarquês e replicadas por outras publicações, ou de um excerto do discurso do papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona, um ano depois. (...)
Os muçulmanos na Europa estão entre um indisfarçado preconceito nas ruas e o radicalismo contagioso que persiste nas comunidades. Por um lado, são pressionados a revelar lealdade para com a cultura ocidental, provando que a religião islâmica é pacífica. Por outro, são vítimas da incompreensão e dos estereótipos que alimentam os radicais de uma tradição bélica e hegemónica. O problema tem uma caracterização cultural, com uma “confrontação” entre tradições e comportamentos também de influência religiosa. 
Multiplicam-se as vozes que sustentam a tese de uma islamização em curso, resultado de uma atitude política passiva por parte da Europa. Ao não o enfrentarem com um debate sério e medidas concretas, os poderes públicos e políticos abrem espaço a medos desnecessários e manipuláveis.
A pressão sobre as democracias é cada vez maior, agravada por uma recessão económica. Definitivamente, a Europa anda assustada. E o binómio imigração/religião tem sido manipulável. Perigosamente manipulável.
Por outro lado, há cada vez mais sinais de uma rejeição do património religioso que constitui a memória da Europa, excluindo a simbologia religiosa do espaço público e, por consequência, remetendo-a para o privado.
Estamos diante de novas formas de fundamentalismo anti-religioso, sob o pretexto de que a religião é motivo e fonte de discórdias, sem se admitir o potencial espiritual, relacional e comunitário das plataformas religiosas. (...)
Este tempo testemunha as primeiras gerações na Europa sem referências culturais religiosas, com a maioria dos comunicadores impreparados para compreender e descodificar o fenómeno religioso. E os protagonistas religiosos não conseguem – não terão como –, sintonizar-se com a assertividade e ultra-sintetização da linguagem mediática, recorrendo, muitas vezes, a clichés simplificados e pouco esclarecedores da complexidade religiosa.
Sendo o fenómeno religioso – entenda-se aqui num contexto alargado de fé, devoção e espiritualidade –, parte integrante e inseparável da identidade colectiva e individual, deixa marcas nas estruturas, formas e conteúdos de relação e pertença. Não só para os crentes, mas para o todo cultural que não pode ler-se sem esta dimensão - chamemos-lhe religiosa –, co-construtora e co-responsável pelos códigos de compreensão, sobretudo éticos, que nos trouxeram até aqui. (...)
Só depois de longos anos de estudo sobre a sua própria religião – cristianismo  –, Hans Kung encontrou os fundamentos teológicos para o que chama ethos mundial ou global, um “entendimento universal entre as religiões que deve ser ethos comum da humanidade, mas um ethos que não deverá substituir a religião – como às vezes se tem pensado” de forma errada.
Todos reparamos que, em ambiente de encontro, as religiões sustentam a crítica à utilização da religião para fazer a guerra. Valoriza-se a paz e a justiça. No actual contexto global, os valores religiosos e espirituais apresentam-se como prioritários e realçam a inevitabilidade da liberdade religiosa na defesa do “bem comum”.
Com o sofrimento e a injustiça no centro das reflexões, a promoção da paz e a defesa da “criação” como meta comum, as próprias estruturas religiosas podem reforçar uma ética culturalmente transversal, com consequências nos compromissos políticos e sociais na plataforma global.
Mas para tal, há que assumir a prioridade de derrubar barreiras, atenuar o desconhecido que agudiza medos, quebrar mitos mediáticos e construir confiança. Numa palavra… diálogo. Estabelecer pontes de diálogo. Com crentes e não crentes, absorvidos pela universalidade de uma ética emancipada, que, não sendo um valor absoluto ou exclusivamente religioso, é absolutamente carente de diálogo, em liberdade, sem prejuízo da observação preventiva e da crítica construtiva que assegura a convivência entre a fé e a razão.
Este é o percurso circular da reflexão: Da liberdade religiosa à urgência do diálogo que, por sua vez, garante a própria liberdade. (...)

(Foto: uma sala de meditação num centro comercial de Londres)

A arte da lentidão

Crónica

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.
Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.
(José Tolentino Mendonça na Revista/Expresso de 25.Maio.2013; texto integral disponível aqui; ilustração: obra de Lourdes Castro na Capela do Rato, em Lisboa, reproduzida daqui). 



quarta-feira, 29 de maio de 2013

Três olhares sobre a comunicação

Crónica

A propósito da nomeação de D. Manuel Clemente para patriarca de Lisboa, e referindo-se ainda ao Papa Francisco e ao padre Tolentino Mendonça, Manuel Pinto escreveu (crónica intregral no Página Um da Renascença): 

(...) Este olhar para a comunicação como dimensão constituinte da vida individual e social e para o campo mediático como uma “ecologia” e não apenas como conjunto de canais ou de ferramentas vai muito para além daquela ideia do senso comum de que o valor dos media depende dos usos que deles se faz.
Um horizonte que alarga e enriquece ainda mais esta visão da comunicação na sociedade é a do Papa Francisco, quando defende que cabe à Igreja a tarefa de “sair de si mesma para ir às periferias existenciais” e “geográficas”, “vivendo uma cultura do encontro”. Neste nosso mundo, não será este um desafio também para as pessoas, grupos e instituições em geral? (...)
Centralidade da comunicação na vida das pessoas e sua ecologia; tempo requerido para habitar as coisas e ouvir os outros; e relação e encontro com os esquecidos e silenciados nas periferias da vida: três direções interdependentes que são respiros de esperança para forjar uma nova comunicação e um futuro melhor.



No meio da crise


José Antonio Pagola

A crise económica vai ser longa e dura. Não nos enganemos. Não poderemos olhar para o outro lado. À nossa volta, mais ou menos próximo, iremos encontrando famílias obrigadas a viver da caridade, pessoas ameaçadas de despejo, vizinhos atingidos pelo desemprego, doentes sem saber como resolver os seus problemas de saúde ou medicação.

Ninguém sabe muito bem como irá reagir a sociedade. Sem dúvida, irá crescendo a impotência, a raiva e a desmoralização de muitos. É previsível que aumentem os conflitos e a delinquência. É fácil que cresça o egoísmo e a obsessão pela própria segurança.

Mas também é possível que vá crescendo a solidariedade. A crise pode-nos fazer mais humanos. Pode ensinar-nos a partilhar mais o que temos e aquilo de que necessitamos. Podem-se estreitar os laços e a ajuda mútua dentro das famílias. Pode crescer a nossa sensibilidade para com os mais necessitados. Seremos mais pobres, mas podemos ser mais humanos.

No meio da crise, também as nossas comunidades cristãs podem crescer em amor fraterno. É o momento de descobrir que não é possível seguir Jesus e colaborar no projeto humanizador do Pai sem trabalhar por uma sociedade mais justa e menos corrupta, mais solidária e menos egoísta, mais responsável e menos frívola e consumista.

É também o momento de recuperar a força humanizadora que se encerra na eucaristia quando é vivida como uma experiência de amor confessado e partilhado. O encontro dos cristãos, reunidos cada domingo em torno de Jesus, há-de converter-se em lugar de consciencialização e de impulso de solidariedade prática.

A crise pode sacudir a nossa rotina e mediocridade. Não podemos comungar com Cristo na intimidade do nosso coração sem comungar com os irmãos que sofrem. Não podemos partilhar o pão eucarístico ignorando a fome de milhões de seres humanos privados de pão e de justiça. É uma burla darmos a paz uns aos outros esquecendo os que vão ficando excluídos socialmente.

A celebração da eucaristia vai ajudar-nos a abrir os olhos para descobrir a quem temos de defender, apoiar e ajudar neste momento. Há de despertar-nos da “ilusão da inocência” que nos permite viver tranquilos, movendo-nos e lutando apenas quando vemos em perigo os nossos interesses. Vivida cada domingo com fé, pode fazer-nos mais humanos e melhores seguidores de Jesus. Pode ajudar-nos a viver a crise com lucidez cristã, sem perder a dignidade nem a esperança.

Distribuição: EcleSALia; apoio na tradução: Antonio Manuel Álvarez Pérez

terça-feira, 28 de maio de 2013

A alegria de João XXIII e a Trindade

Crónicas

Na sua crónica de domingo passado, no Público, que pode ser lida na íntegra aqui, frei Bento Domingues escreveu sobre O segredo da alegria de João XXIII. E cita o próprio Angelo Roncalli, no seu Diário Íntimo:

“Desde o dia em que o Senhor me chamou, miserável como sou, para este grande serviço, já não me sinto pertencer a nada de particular na vida: família, pátria terrena, nação, orientações particulares em matéria de estudos, de projectos, por melhores que sejam. Agora, mais do que nunca, apenas me reconheço como indigno servo dos servos de Deus. O mundo inteiro constitui a minha família. Este sentido de pertença universal deve dar vigor e vivacidade ao meu espírito, ao meu coração. (…) Estou, sobretudo, grato ao Senhor pelo temperamento que me deu, que me preserva de incómodas inquietações e de desânimos (…) O bom acolhimento à minha pobre pessoa, imediatamente dispensado e mantido por quantos de mim se aproximam, é sempre motivo de surpresa.”

Na crónica Ao encontro da Palavra, o padre Vítor Gonçalves escreve sobre a Santíssima Trindade, com o título Intimidade:

Quando olhamos o extraordinário ícone de Andrei Rublev, que representa a Trindade nos três personagens que visitaram Abraão e lhe prometeram o nascimento de Isaac, sentimos a força desse movimento, e da intimidade que transmite.

No “sermão da planície” de São Lucas, Jesus diz que “a boca fala da abundância do coração” (Lc 9, 45). É aquilo que vivemos no íntimo que se faz palavra e comunicação. Conhecer alguém é entrar na sua intimidade, mas isso só é possível se também o acolhemos na nossa. E pergunto-me do que falamos em tantas palavras ditas? Nas palavras da liturgia e do direito eclesiástico, nas palavras dos dogmas e do perdão, comunicamos a intimidade do amor de Deus que é mistério de atracção? E como entramos numa intimidade a não ser pela porta estreita da humildade, deixando de fora títulos, egoísmos e soberbas? Não se conhece de fora o mistério de Deus: só do interior! Na intimidade.

O sentido do outro na economia

Uma “Conversa à Capela” sobre o sentido do outro na economia decorre esta quarta-feira, 29, na Capela do Rato (Calç. Bento da Rocha Cabral), em Lisboa, a partir das 21h30. A iniciativa conta com intervenções dos economistas Manuela Silva (docente jubilada do ISEG) ) e José Tavares (Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa). Mas o ponto de partida é o livro de Elena Lasida, O Sentido do Outro. A crise, uma oportunidade para reinventar laços, das Edições Paulinas.
Elena Lasida esteve em Lisboa várias vezes. Em Março de 2012, participou numa conferência da Fundação Betânia. No final, fiz-lhe uma pequena entrevista, que deu origem ao texto que a seguir reproduzo, publicado a 15 de Abril de 2012, na revista Público/2 (e de onde reproduzo também a foto).

Elena Lasida, 52 anos, é mulher de vários saltos. Uruguaia de nascimento, resolveu um dia ir da América Latina para a Europa, passando a viver em França em 1992. Economista de formação, passou a interrogar a economia a partir da teologia, reconhecendo os limites da ciência económica. Professora universitária de profissão, não resistiu a fazer trabalho associativo, empenhando-se no apoio a estrangeiros sem papéis que vivem, indocumentados, na região de Paris.
Há 10 anos que Elena Lasida preside à Rede Cristãos-Imigrantes, que ajudou a criar há quase duas décadas. A rede surgiu na sequência de ocupações de igrejas por parte de imigrantes indocumentados. Recorda, dessa altura, um africano que se chamava Mohamed e que, no processo para adquirir a nacionalidade francesa, queria mudar o nome para Michel. “O nome está muito ligado à identidade de cada um, mas ele sentia que o nome o discriminava no acesso ao trabalho e ele não queria isso. A sua história impressionou-me muito, era como renunciar a uma parte de si mesmo”, diz Lasida à 2.
Não foi fácil, pois as próprias comunidades católicas estavam – estão, ainda – divididas sobre a questão da imigração. Mas foi possível mobilizar pessoas, franceses e imigrantes. “A primeira coisa foi pormo-nos de acordo em acolher os imigrantes, convertendo a ocupação em acolhimento nas igrejas.”
Hoje, a rede, de carácter informal, mobiliza centenas de pessoas em duas dezenas de paróquias e movimentos católicos, aos quais se juntam protestantes, ortodoxos e outros crentes, a propósito de iniciativas concretas. O seu trabalho abrange essencialmente três frentes: cursos de alfabetização, apoio jurídico e a organização de um jantar mensal, onde se trocam pratos franceses e estrangeiros – e que se intitulam “o gosto do outro”, também título do último livro que publicou (Le goût de l’autre – La crise, une chance pour réinventer le lien, ed. Albin Michel).
Lasida procura, desde há muito, ligar modos diversos de estar na vida. “Procuro juntar duas maneiras diferentes de olhar a realidade, a partir do Norte e do Sul. Procuro juntar duas maneiras diferentes de pensar a realidade, a partir da economia e da teologia. E procuro juntar duas maneiras diferentes de transformar a realidade, unindo a teoria académica e a prática associativa”, diz.
Há duas semanas, a economista esteve pela segunda vez em poucos meses a fazer uma conferência em Portugal. Depois de ter sido oradora principal, em Setembro, na Fundação Gulbenkian, a convite da rede Economia Com Futuro, Elena Lasida voltou agora ao país, a convite da Fundação Betânia, em Lisboa, e da Universidade Católica, no Porto. Desta vez, para falar sobre: “Que futuro para a economia – contributos da antropologia judaico-cristã”.
Um tema improvável. Ou talvez não, tendo em conta o trajecto desta economista-teóloga. Foi mesmo a teologia que a levou a fazer perguntas ao trabalho de economista. E a tentar introduzir o transcendente na ciência económica: “A transcendência, na economia e em geral, vem sempre através da relação. É o outro que me reenvia para além de mim mesmo. Na relação, há sempre essa experiência da transcendência.” A sua participação na Rede Cristãos-Imigrantes nasce da mesma convicção: “Em relação aos estrangeiros, é a experiência do outro, diferente, que me reenvia para lá de mim mesma, que é central. Por isso, a transcendência está lá.”
A questão dos imigrantes remete para um dos cruzamentos da economista: “Venho do sul e vivo no Norte. A fronteira entre o Norte e o Sul atravessa-me no interior de mim mesma e cruzo-a todos os dias, mesmo que não me mova.” Mas não se trata apenas de atravessar fronteiras: “O meu olhar sobre o Sul está pintado de Norte e o meu olhar sobre o Norte está pintado de Sul. É impossível hoje separar o que corresponde a um lado e a outro.”
Outros confrontos, então. O que liga a vida académica e o empenhamento social – além da Rede Cristãos-Imigrantes, Lasida integra o comité de redacção da revista Transversalités, anima grupos de pesquisa sobre o desenvolvimento sustentável e sobre novas solidariedades Norte-Sul e faz parte da direcção da Cáritas de França. Convidada com frequência para debates e conferências, entende isso também como forma de “tocar o terreno”: “Muitas vezes são pequenos grupos de pessoas que estão verdadeiramente comprometidas na acção e me pedem que vá ao seu encontro. Aprendo muitas coisas a partir das questões com que elas se confrontam.”
E ainda o confronto da teologia, ciência que remete para o transcendente, e da economia, onde se trata a mais material dimensão da vida das pessoas. Foi a teologia que a levou a fazer perguntas à sua formação de economista, explica. “Onde está a vida? O que faz viver? Qual é a fonte da vida? A vida não é apenas a material, a satisfação de necessidades físicas, mas é também o seu sentido. É essa a questão que a teologia coloca à economia: o que dá sentido à vida?”
Elena Lasida admite que, hoje, a economia não cuida da vida como deveria. “Ela tem reduzido a vida, em grande parte, ao conforto material e ao acesso à riqueza financeira e material. E isso significa que deixa de lado uma parte essencial da vida.” Daí que, na sua tese, tenha decidido abordar a questão da transcendência na economia: “A economia é um lugar de relação entre pessoas que têm interesses opostos e nesse sentido é uma fronteira. Como qualquer fronteira, pode ser um lugar de separação ou de reunião. O que é importante é que a economia não se pode pensar sem se abrir a qualquer coisa que nos escapa.”
Está em causa a questão dos limites: “É a partir do reconhecimento dos seus limites que a economia pode dialogar com as outras disciplinas”, diz. Afirmação ainda mais premente nos tempos que correm: “Na sua torre de marfim, a economia sentir-se-à sempre superior. O trabalho interdisciplinar supõe que cada disciplina se deixa interrogar, desarmar pela outra com a finalidade de fazer um verdadeiro trabalho de elaboração colectiva.”
Não por acaso, a economista, professora e vice-reitora para a Investigação na Faculdade de Ciências Sociais e Económicas do Instituto Católico de Paris, dirige também um mestrado em Economia Solidária e Lógica do Mercado. Porque, diz, é preciso relacionar, por exemplo, conceitos bíblicos como aliança e promessa com definições e critérios económicos. “A aliança é o contrário do domínio, supõe uma relação de interdependência e corresponsabilidade”, que vai muito além da noção de contrato que domina as relações económicas.
O comércio justo, aponta, pode ilustrar como concretizar o conceito de aliança na economia: “Supõe um projecto comum entre produtor e consumidor, em que cada um toma em conta também o interesse do outro”. O produtor respeita condições sociais e ambientais, o consumidor aceita pagar um pouco mais para ter em conta as necessidades do produtor.
Do mesmo modo, o microcrédito reenvia para a noção de promessa, ultrapassando os conceitos de risco e garantia, dominantes na economia: na finança clássica, as pessoas são uma “ameaça” perante as quais nos devemos proteger, diz; no microcrédito, cada pessoa é uma “promessa de vida”.
Perante o domínio da grande finança, Elena Lasida não tem uma solução. Mas tem uma convicção profunda: “É preciso pensar a finança de uma outra maneira completamente diferente. A finança tem uma primeira finalidade que é justamente financiar a economia real, elas não é uma finalidade em si mesma. O dinheiro deve ser para a produção real e para fazer circular os bens – e, por isso, as relações. Trata-se de reencontrar essa função primeira do dinheiro.”