quinta-feira, 4 de abril de 2013

Redescobrir o gosto de ler António Vieira


É, sem dúvida, o acontecimento editorial do ano. Depois de várias tentativas de completar a edição da obra do padre António Vieira, serão hoje apresentados os três primeiros volumes da Obra Completa do Padre António Vieira e do projecto Vieira Global. A edição completa ficará concluída até final de 2014.
D. Manuel Clemente, historiador e bispo do Porto, e João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo (Brasil) farão a apresentação dos três primeiros livros daqui a pouco, a partir das 18h, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa (a sessão terá uma reedição amanhã, na Casa da Música, no Porto, com Viriato Soromenho-Marques a apresentar a obra). O Teatro Éter e António Mortágua encenarão um dos sermões de Vieira. A Banda de Investigação da Universidade de Lisboa, a Ai Deus i u é, o Departamento de Música da Universidade do Minho e o Sindicato de Poesia também participam neste acontecimento, que conta com a inauguração de uma exposição de aguarelas de João Alvim, inspirada na obra do padre Vieira.
Os três primeiros volumes, que ficarão disponíveis a partir de dia 15, incluem dois tomos com aquela que é uma das obras maiores da obra vieirina, a Clavis Prophetarum, ou A Chave dos Profetas (o terceiro reúne as Cartas Diplomáticas, uma dimensão fundamental na vida multifacetada de Vieira). O padre jesuíta e missionário trabalhou nela durante cinco décadas e era esse texto que ainda o atormentava quando morreu, em São Salvador da Baía, a 18 de Julho de 1697.
Há 12 anos, tinha já sido publicado (ed. Biblioteca Nacional) o terceiro livro da Clavis, na edição crítica iniciada por Margarida Vieira Mendes e concluída por Arnaldo Espírito Santo (que é pena que não integre a vasta equipa de meia centena de investigadores portugueses e brasileiros que agora edita a obra completa). O mesmo investigador, coordena, aliás, a edição crítica dos Sermões que tem vindo a ser publicada pela Imprensa Nacional, e da qual já foram editados dois volumes.
A publicação da obra completa vieirina, num total de mais de 15 mil páginas, das quais um quarto serão textos inéditos, era uma empreitada sonhada há século e meio por muitos investigadores. “Conhecem-se mais de uma dezena de projectos de edição da obra completa daquele que foi considerado por Fernando Pessoa como sendo o imperador da língua portuguesa”, dizia há dias, citado no sítio do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, o historiador José Eduardo Franco que, com o filósofo Pedro Calafate, dirige esta colecção.
Os coordenadores da obra referiam que ela “revelará a militância do missionário, a eloquência do pregador, o empenho e a argúcia política do conselheiro e diplomata ao serviço do rei de Portugal, D. João IV, o crítico vigoroso da discriminação social contra judeus e escravos, a defesa de uma sociedade cristã mais coerente que não segregasse cristãos-novos de cristãos-velhos, o denunciador da corrupção, o professor e o poeta inspirado, o anunciador de futuros de esperança em tempo de crise dolorosa com que o nosso país então se debatia”.
Acrescentavam os dois coordenadores, na mesma página: “O poder da convicção, a defesa da tolerância e da dignidade de toda a pessoa humana e a importância de entregar a vida por causas nobres são alguns aspectos da vida e obra do padre António Vieira que podem inspirar os homens e as mulheres dos nossos dias.”.
Esta manhã, em entrevista à TSF, José Eduardo Franco insistia na extraordinária actualidade do pensamento de Vieira, nestes tempos de crise, em que os que pouco ou nada têm são forçados a pagar os desmandos dos que muito sugaram.
Esse pensamento revela-se por exemplo em muitos Sermões, mas também em textos como a Clavis. Esta é uma “obra providencial”, como dizia Arnaldo Espírito Santo em Outubro de 2000, em que se revela o Vieira utópico e optimista sobre o futuro da humanidade.
O texto do missionário que agora se revela pela primeira vez integralmente, divide-se pela fundamentação bíblica do Reino de Cristo (livro I), a consumação ou não do reino de Cristo na terra, incluindo algumas questões concretas como a integração dos índios na Igreja ou o problema da paz (livro II) e o problema da extensão da salvação (livro III). “Do Reino de Cristo consumado na terra” era o subtítulo desta obra de Vieira, que remete para a profecia da universalidade e que, no terceiro tomo desta obra, abandona a ideia de quinto império como correspondendo ao monarca português D. João IV, e que antes defendera. Na Clavis, revela-se a sua utopia de um mundo e uma Igreja em que ninguém ficaria excluído, fundados sobre os princípios da justiça, da harmonia e da paz. E antecipam-se, embora com a linguagem da época, o diálogo inter-religioso e intercultural que marcam a contemporaneidade.
Muitos desses temas estão também presentes nos Sermões. Sermões como o da Sexagésima, texto que dá início à edição crítica da Imprensa Nacional, ou o Sermão da Primeira Dominga do Advento, o da Nossa Senhora do Ó, o de Quarta-Feira de Cinzas ou o Sermão de Santo António aos Peixes estão entre os mais conhecidos. Neles se alude a questões como a inveja e a ingratidão da pátria, a defesa dos índios e dos judeus, mas também se encontram múltiplas referências biográficas e pessoais, como uma autobiografia escondida.
Exemplo disso é o famoso Sermão de Santo António aos Peixes, de 1652: “Este sermão (que todo é alegórico) pregou o autor três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos índios, pelas causas que se apontam no sermão”.
Feito no Maranhão, perante os colonos portugueses, o padre jesuíta criticava, nesse sermão, o grande que come o pequeno: “Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
No da Sexagésima (correspondente ao penúltimo domingo antes do início da Quaresma, algures entre Janeiro e Fevereiro) esclarecia Vieira a sua intenção com a publicação dos sermões: “O meu intento não é fazer Sermonários, é estampar os Sermões que fiz. Assi como foram pregados acaso, e sem ordem, assi tos ofereço”, escrevia Vieira no prefácio, dirigindo-se ao “leitor”.
Essa ideia destaca-se logo nesse texto, quando ele critica a forma como muitos sermões eram feitos: “Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.”
Além de missionário e jesuíta, de diplomata ao serviço de D. João IV e da causa da independência de Portugal, Vieira foi perseguido pela Inquisição, mas conseguiu do Papa Clemente X a suspensão do Tribunal do Santo Ofício em Portugal por alguns anos.
Nascido a 6 de Fevereiro de 1608 em Lisboa, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e da mestiça Maria de Azevedo, António foi para a Baía, no Brasil, com seis anos. Aos 15 entrou no noviciado jesuíta. Um ano depois, ficou com a missão de escrever o relatório anual da missão para o geral da Companhia de Jesus, a chamada carta ânua, uma tradição da ordem desde a sua fundação.
Dois anos antes de ser ordenado padre, em 1633, com 25 anos, Vieira começara a fazer sermões, neles reflectindo as causas que defendia: a defesa dos índios e dos judeus, a oposição à escravatura (tema em que por vezes hesita), os vícios da pátria.
No Sermão de Santo António, de 1670, Vieira dizia que “sem sair [de Portugal] ninguém pode ser grande”. E acrescentava: “Nascer pequeno, e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra: para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer, o mundo.”
Perseguido pela Inquisição por defender os judeus, o Santo Ofício quis expulsá-lo dos jesuítas. Valeu-lhe o apoio de D. João IV, a quem Vieira apoiava na causa da restauração da independência. Em 1660, depois da morte de D. João e com o pretexto da publicação de Esperanças de Portugal, V Império do Mundo, a Inquisição considerou-o “escandaloso”, “ofensivo”, “fátuo com sabor a heresia e injurioso para a Igreja”. A sentença mandou depois que fosse "privado para sempre da voz activa e do poder de pregar".
De nada valeu essa sentença. Hoje, podemos voltar a redescobrir o gosto de ler António Vieira. 
(Além das obras já referidas e da colecção que hoje e amanhã é apresentada, devem destacar-se ainda outras edições de Vieira existentes no mercado: Sermões e História do Futuro, ambos com prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, reeditada pela Sá da Costa; Apologia das Coisas Profetizadas (ed. Cotovia), organizada por Adma Fadul Muhana (uma das colaboradoras da Obra Completa); e uma antologia dos Sermões, organizada por António de António Abreu Freire, na Portugália.)

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