domingo, 17 de junho de 2012

Sobre o risco do "arquivo" do Concílio

O cardeal Mauro Piacenza, Prefeito da Congregação para o Clero deu esta sexta-feira uma entrevista à agência Zenit, em que se pronuncia sobre a atualidade do Concílio Vaticano II. As suas palavras não podem deixar de revestir significado, no atual contexto da vida eclesial.
À pergunta: "Acha que o Concílio ainda não é suficientemente conhecido?", o cardeal responde:

"Eu acho que a Igreja é sempre guiada pelo Espírito Santo e que, portanto, os textos como os do Concílio mesmo passados 50 anos, podem e devem continuar a falar a todo o Corpo eclesial, e especialmente a todos os Sacerdotes, evitando com cuidado a tentação, sempre possível, do precoce e superficial 'arquivo'. O Concílio, como foi repetidamente enfatizado tanto pelo Beato João Paulo II, como pelo Santo Padre Bento XVI, é uma "bússola" para o terceiro milénio e, consequentemente, para toda obra de evangelização e de nova evangelização. A correta hermenêutica é condição, e não obstáculo, ao conhecimento do Concílio. Basta pensar, por exemplo, e lembro-me claramente, no impacto que teve a Encíclica Evangelii Nuntiandi, do Servo de Deus, o Papa Paulo VI, na qual já se interpretava, de modo profético para aqueles tempos, o impulso missionário do Concílio".

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Ventos que sopram de Roma

Chamei aqui a atenção para o que se tem vindo a passar nas negociações entre Roma e a Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, seguidora do cismático bispo Marcel Lefebvre. Hoje o Vaticano confirmou ter proposto a este grupo a plena integração eclesial sob a forma canónica de uma prelatura pessoal, a exemplo do que se verificou e verifica com o Opus Dei. Aparentemente, há ainda dificuldades internas à Fraternidade que, na gíria, 'está a procurar vender cara' a abertura do Papa Bento XVI.
As fontes católicas que acompanham esta matéria revelam, por estes dias, grandes cautelas no modo de noticiar este assunto. Algumas ainda chegam a sugerir que o gesto papel é "generoso", deixando sugerido que a mesma atitude não existe (ou se espera agora) do outro lado.
Veremos no que tudo isto dá.
A verdade é que não existem praticamente análises de contextualização e leitura crítica e menos ainda debate sobre uma matéria desta magnitude.
Não há muito tempo, contrariando a sugestão dos que reivindicam um novo concílio - o Vaticano III - gradas figuras da Igreja respondiam que essa pretensão era inoportuna, visto que faltava cumprir o Vaticano II. Pois agora, numa altura em que seria oportuno relançar a aplicação do espírito e da letra conciliares, vemos uma  atitude geral de retração e de tolerância doutrinal que não tem existido noutras situações e noutros contextos. O bispo Bernard Fellay é claro: "Não estamos de acordo doutrinalmente, no entanto, o Papa quer reconhecer-nos". Como é sabido, as duas matérias relevantes que os seguidores de Lefebvre repudiam do Vaticano II são a liberdade religiosa e o ecumenismo, duas matérias cruciais no modo de estar da Igreja no mundo contemporâneo. A mudança de atitude, que atribuem ao atual Papa, leva-os já a considerar que estes são "problemas secundários", em face daqueles que, esses sim, seriam "tremendamente importantes na Igreja de hoje". Resta saber quais serão eles.

[À margem:
É precisamente a liberdade religiosa - que seria "problema secundário" na orientação que lhe foi dada pelo Concílio, mas que é sentida como grave problema hoje, em várias partes do mundo - que vai levar o Episcopado dos Estados Unidos, com o apoio expresso que lhe acaba de chegar de Roma, via núncio apostólico, a lançar a partir da próxima semana e até 4 de Julho, dia da independência dos EUA,  uma vigorosa campanha contra a administração de Obama. Campanha que não pode escapar a uma leitura político-partidária, por decorrer em plena corrida eleitoral à presidência do país.
De resto, um sinal diverso mas de sentido globalmente convergente, pode observar-se em Itália, onde está na forja um partido católico de centro direita, com o aparente beneplácito da Conferência Episcopal Italiana. Mostra-o claramente o jornalista e vaticanólogo Paolo Rodari, num artigo hoje publicado no seu blog Palazzio Apostolico).

sábado, 9 de junho de 2012

Seguidores de Lefebvre: «Foi a atitude da Igreja oficial que mudou, não nós»

Em entrevista ao site oficial DICI (Documentation, Information Catholiques Internationales), do movimento tradicionalista Sociedade S. Pio X, o respetivo superior, o bispo Bernard Fellay, faz afirmações a propósito das negociações que tem mantido com o Vaticano como estas:
«Foi a atitude da Igreja oficial que mudou, não nós. Não fomos nós que pedimos um acordo, é o Papa que quer reconhecer-nos».
«O que mudou, fez questão de acrescentar Fellay, é que Roma não faz da aceitação total do Concílio Vaticano II uma condição para a solução canónica. Actualmente há em Roma alguns que consideram que uma compreensão diferente do Concilio não é determinante para o futuro de la Igreja, dado que a Igreja é mais do que o Concílio».
Na entrevista percebem-se dois factos: o processo é tido como pouco provavelmente reversível, dada a fase a que chegou; e o próprio Papa Bento XVI surge na entrevista como empenhado neste processo, criadas que foram as condições - ou pelo menos o clima - para o acordo entre os seguidores de Lefebvre e Roma.
Manda a prudência que se atente na posição que Roma vai tomar. Ao que tudo indica, não deverá tardar. O lamentável secretismo que tem caraterizado este processo faz com que os cristãos de base que seguem com atenção o que se passa na Igreja se tenham de limitar aos sinais exteriores - gestos, notícias de encontros, comunicados relativamente anódinos desses encontros. Como se as matérias que estão em jogo não devessem ser debatidas de forma muito mais alargada, independentemente dos passos das conversações que têm ocorrido.
Sem entrar agora na questão do entendimento que esta Sociedade S. Pio X faz da Tradição e, a partir desse entendimento, se posiciona face a questões e decisões fundamentais do Concilio Vaticano II (precisamente no ano em que se comemora o cinquentenário deste acontecimento eclesial), há problemas delicadíssimos e graves que o processo contém, e que se referem ao modo como estão a ser acautelados princípios de equilíbrio e de equidade de diferentes modos de ser e de estar em Igreja.
Mais concretamente: configura-se, nas movimentações em curso, uma cada vez mais nítida assunção da linha conservadora que, em nome de (e inspirada por) uma hermenêutica da continuidade, acaba por fazer a rutura com o lado mais corajoso e criativo do Concílio e promovendo um catolicismo "descafeinizado".
A história mostra que a vida da Igreja nunca coube numa orientação estratégica determinada e que o Espírito não é domesticável por ninguém, por mais alto que se situe na estrutura hierárquica. Uma coisa é certa: não é tranquilizador o espírito que se deteta na entrevista do bispo Bernard Fellay.

(O texto da entrevista encontra-se traduzido em várias línguas. Ver ao fundo da versão em inglês).

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Três reformas que se impõem na Igreja Católica

A propósito do chamado Vatileaks (desvio e publicação de documentos secretos da Casa Pontifícia) e de outros casos estranhos recentes no Vaticano, o historiador da Igreja italiano Alberto Melloni publicou nesta segunda-feira, dia 4, no jornal Corriere della Sera um texto importante que, entretanto, a newsletter do Instituto Humanitas Unisinos publicou (tradução de Moisés Sbardelotto):

"E, assim, não acabou. Depois da demissão de Gotti Tedeschi e da prisão de um empregado do papa,chegam outros pedaços de papel, que, como em toda estratégia de tensão, aumentam a confusão, não tanto por aquilo que dizem, mas sim pelo próprio fato de existirem. Para não continuarmos sendo prisioneiros dos detalhes, é preciso então levantar o olhar: e tentar definir os três problemas objetivos, as três explicações possíveis e as três reformas que esse pandemônio torna mais urgentes.
Os problemas que florescem dizem respeito à formação, à seleção, à cultura da classe dirigente do catolicismo do século XXI.
A medíocre encenação das indiscrições diz que existem agitadores, agentes, organizações, com livros de pagamento, lobbies de carreira e o calendário do campeonato da luta livre entre movimentos. Um mundo diversificado nos objetivos: mas unido pela convicção de que a Igreja precisa deles no poder mais do que do evangelho, e permeado por uma lógica de violência à qual nos adaptamos apenas se formos treinados por mestres competentes.
Nessa catástrofe formativa – que contagiou sem aparentes distinções o clero secular, o clero regular e o clero dos movimentos –, desencadeia-se o fato de que muitos dos piores fizeram carreira na Cúria. Um fenômeno que leva a nos perguntarmos com ainda mais angústia por que aqueles anticorpos de sabedoria que devem existir também aí correm o risco de parecer áfonos e invisíveis.
Até esse desequilíbrio, no entanto, seria remediável se, no episcopado, nas Igrejas, nos movimentos, fosse preservada uma cultura de diálogo. A abertura sincera ao exame atento das questões, a capacidade de tratar com seriedade dos problemas difíceis e de cultivar a pluralidade de sabedorias foram sacrificadas pela obsessão de uma teologia que glosa o catecismo, murmura a missa em latim errando os acentos e louva enfaticamente a última encíclica, na certeza de que esse excesso de zelo não induzirá à suspeição, mas será considerado um mérito.
Esses fatos, sem a orientação de insiders infiéis, podem ser explicados dentro de três cenários possíveis.
A primeira é que eles estão na presença de uma luta de poder digna das malebolge [vales do inferno] de Dante. O cardeal Bertone – o confidente de uma vida que, independentemente dos dotes e dos limites do seu governo, é o escudo humano de Bento XVI – é um alvo não inerte, mas transitório. Quem desencadeia tal desordem não quer o posto do número dois. A soma desse projeto de luta entre semipoderosos, em que entram por escolha ou por acaso o secretário particular, os aspirantes a secretários de Estado (certamente não quem foi secretário de Estado) faz o resto. E assim, entre aqueles que se passam por "ajudantes" de uma suposta purificação ratzingeriana e os porta-estandartes de uma radicalização ultraconservadora do douto conservadorismo de Bento XVI, teria se gerado uma reação fora de controle, com muito fogo amigo e ações de cobertura.
A outra possibilidade é que essa confusão seja toda e somente italiana, em sentido estrito: isto é, que projete sobre a Igreja aquele desastre político-moral que vai muito além dos spread e do tratamento Monti. O populismo inescrupuloso (que nestas horas vimos em ação até contra o sentido do Estado de Giorgio Napolitano), misturado com uma relação desprotegida com as finanças e com a direita italiana, enfim, teria emprestado à Igreja métodos e brutalidade que só nós, italianos, sabemos ler sobre a filigrana da eleição do prefeito de Roma ou dos equilíbrios de qualquer holding.
A terceira possibilidade é que um marasmo aparentemente padresco faça parte do jogo da grande política. Se as agências que se fazem chamar de "mercado" apontaram para o fato de que os alemães (a chanceler alemã, o papa alemão) não sentirão pesar sobre a sua consciência o pesadelo de reabrir, com o fim do euro e da Europa, a porta para a guerra pela terceira vez em 100 anos –, então, manter ocupada a Igreja sobre indecências menores teria um sentido maior.
As três reformas institucionais – que sempre foram a pinça com a qual a Igreja de Roma aferra as questões espirituais – referem-se à Cúria, à diplomacia e ao episcopado.
Por mais de um século, a Secretaria de Estado não funciona, e o sonho montiniano de dar ao papa um primeiro-ministro fracassou. Se o papa coloca na Segunda Loggia alguém grande, ele se submete à sua sombra: e pode chegar a deixar vago o posto como fez Pio XII. Se o Papa escolhe um homem mais evasivo, a lamentação é forte, e a desordem, também. O nó, portanto, deve ser abordado em um quadro eclesiológico de conjunto, como aquele proposto por canonistas do porte de Eugenio Corecco e Francesco M. Pompedda entre os anos 1980 e 1990.
A segunda reforma diz respeito à diplomacia pontifícia: a pelotão dos núncios papais é o primeiro a sofrer de uma marginalidade que se reflete no silêncio eclesial sobre os grandes nós geopolíticos do presente, primeiros dentre todos o europeu e o chinês. Mas 150 diplomatas não são geríveis. Portanto, é preciso um pequeníssimo número de supernunciaturas continentais, confiadas a diplomatas purpurados, ouvidos regularmente em Roma e capazes de fazer pesar sobre as grandes mesas globais a voz da única família do mundo onde todos contam igualmente.
A terceira reforma é uma palavra esquecida do Vaticano II: colegialidade. O papa – viu-se em Milão – precisa se confrontar com aqueles que, por causa da consagração episcopal, recebem um poder sobre a Igreja universal: dessa comunhão, o vigário de Pedro tira a vantagem no plano humano e teológico, sem fazer sombra sobre as suas prerrogativas. Um órgão colegial permanente é esperado desde 1964 e não é o Sínodo dos Bispos convocado com funções consultivas: demorar para se perguntar sobre como dar vazão a esse aspecto da comunhão significa fazer com que o papa se torne um alvo para quem "o ajuda" e tornar a Igreja o motivo de deboche da mídia.
Que é exatamente o que está acontecendo."