domingo, 8 de abril de 2012

"Quem nos estraga a vida? Quem é que no-la pode libertar?"

Eduardo Jorge Madureira, na sua coluna do Diário do Minho deste Dia de Páscoa:


"Nestes dias em que tanto se pede jejum de palavras, mas ninguém se cala, pode muito bem ser, afinal, por via da leitura de algum livro que surja a oferta de uma ou outra ocasião de recolhimento. Uma das obras que, para o efeito, se podem revelar de grande utilidade é Livres para acreditar. Dez passos para a fé, da autoria de Michael Paul Gallagher, um padre jesuíta irlandês, que foi professor de literatura na Universidade de Dublin, razão por que, aliás, não se estranhará que, no livro, escritores, como Nathaniel Hawthorne, T. S. Elliot, Saul Bellow ou Flannery O’Connor, e doutores da Igreja, como Santo Agostinho ou S. Tomás de Aquino, convivam tranquilamente.


Num dos passos mais fecundos do livro, escreve Gallagher que “a fé cristã não é apenas umaquestão de verdade, mas um modo de vida, e um modo de vida que resiste às directivas de uma sociedade de massas. A maior vitória da ideologia do consumismo é reduzir a religião a mais um item na prateleira do supermercado, pondo o cristianismo a competir com o fornecimento e a procura de bens, comodidades ou seguranças”. Considera ele que, “deste modo, uma pequena dose de religião pode tornar-se uma espécie de música de fundo agradável para uma vida fundamentalmente desorientada ou imatura. Este uso tranquilizante da religião para a segurança humana é a armadilha mais típica do mundo desenvolvido. O cristianismo converte-se numa agradável alienação da realidade, pessoalmente consoladora, mas sem nada de desafiante em termos sociais, atraente para um entusiasmo rápido e até para uma certa generosidade, mas evitando a profundidade de um seguimento como uma escolha no mundo de hoje”.

Enquanto professor universitário, Michael Paul Gallagher reconhece que a universidade pode representar um logro, ao ser uma dessas “instituições de elites que criam as suas próprias formas de opressão, permanecendo cegas, pelo menos na prática (a teoria é uma coisa diferente!), para os perigos do seu próprio sistema”. Enquanto padre, lamenta que as “tentações institucionais” possam “levar a melhor”. É que, acrescenta, “a autoridade pode ser mal utilizada, as pessoas podem não ser ouvidas e o ritualismo pode querer fazer-se passar por alimento espiritual”. Gallagher diz que “a lista podia continuar, e isso seria um reescrever das páginas dos evangelhos em que Cristo confronta a religião oficial: Os fariseus não morreram naquela geração. O seu espírito revela-se sempre que não actuamos como discípulos, mas sim como funcionários das coisas de Deus”.

A ideologia consumista, que fornece o pano de fundo e embebe a cultura dominante, é fustigada pelo autor de Livres para acreditar: “Os valores da cultura professados e vividos – sucesso, poder, prestígio, orgulho nacional, pessoal e de classe, riquezas e autoglorificação – chocam tão ampla e profundamente com os valores de Jesus que um seguidor de Cristo não pode senão sentir a cultura como um ataque à fé religiosa”.

Citando o filósofo John Francis Kavanaugh, Michael Paul Gallagher afirma que, ao contrário do que tantos postulam, é possível – e, obviamente, necessário – resistir à cultura dominante, que, assim, será menos dominante e menos desumanizadora, se se discernirem os seus perigos e se se criar algum tipo de consciência partilhada. Os mecanismos da inevitabilidade tão propagados pela ideologia dominante funcionam apenas quando as pessoas estão divididas e fragmentadas e não são capazes de alcançar algum tipo de consciência comum, considera Gallagher, socorrendo-se agora do filósofo Charles Taylor.

“A cultura que nos rodeia tenta fazer com que a religião desconsidere a dimensão de conflito dos evangelhos e que opte por um ‘programa de Jesus reduzido’”, para usar uma expressão de um outro autor, Michael Warren, que Gallagher convoca para explicar que, “nesta situação, qualquer resistência genuína terá de estar ‘fundamentada em determinados modos de vida que concretizem uma alternativa de vida’”.

Depois de citar Warren, que acredita que, no contexto religioso, um grupo não pensa primeiro para em seguida agir, mas, pelo contrário, o seu modo de agir plasma o seu modo de pensar: quando se descobrem os compromissos adequados, surge também a estrutura de vida adequada, Michael Paul Gallagher reclama uma suspeita saudável em relação à cultura que nos rodeia, capaz de representar mais um passo na direcção da liberdade. É preciso “despertar e procurar discernir as influências à nossa volta!” E, retomando uma questão de Warren, pergunta Gallagher: “Quem é que está a imaginar a tua vida por ti?” Esta pergunta, se se quiser, pode desdobrar-se em duas: Quem é nos estraga a vida? Quem é que no-la pode libertar?".

(Crédito da foto: The Jesuits in Ireland)

1 comentário:

João Delicado disse...

Que surpresa-coincidência engraçada! Ainda esta semana escrevera um pequeno texto sobre o Prof. Gallagher! Grande homem.

Pode-se ler aqui:
http://www.joaodelicadosj.blogspot.it/#!http://joaodelicadosj.blogspot.com/2012/04/lava-pes-ultima-ceia-jesus-cristo.html

Obrigado pelo "folhear" do livro, que já comprei mas ainda não tive oportunidade de ler!
João.