segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Conheço uma família…

Conheço uma família que, desde há anos, se junta uma vez por ano.
De perto e de longe vêm quatro gerações, num total de perto de cem pessoas. 
Alguns mal se conhecem, sabem apenas que pertencem à família. 
Outros foram (ou vão ser) incorporação recente. 
Há quem seja íntimo e quem seja distante. Há zangas antigas, uma que outra entretanto desfeita. Feitios de muitos feitios. 
Há memórias de quem já não vem, especialmente a do ‘patriarca’ que foi um sábio discreto e solicitado, que, sem sonhar, talvez seja o segredo da reunião anual.
Esta família em nada se distingue de muitas outras famílias, a não ser, talvez, por essa vontade de encontrar-se; de afirmar que o encontro é mais importante do que a rivalidade, a apatia, a zanga ou a inveja. 
Nesses encontros não há discursos, a não ser talvez os que acontecem com o vizinho de mesa mais próximo ou o que liberta um copo a mais. Há, sim, o pôr as conversas em dia à volta da mesa comum, os jogos de graúdos e miúdos, o conforto a quem sofreu a adversidade, a evocação dos momentos e acontecimentos importantes, por vezes uma discussão mais acirrada. E sem delimitações rígidas de quem pertence ou está de fora: pelo menos à hora do café não é raro juntarem-se outros amigos e vizinhos.
Reunir-se não é obrigatório e, um dia, se não houver quem faça esse papel de convocar e organizar, pode ser que se interrompa ou até acabe. E nem por isso a família acabará, porque outros serão por certo os caminhos dos encontros e desencontros.
O que tem subsistido é a vontade do encontro, a vontade de sobrepor a convivência às pressas e pressões do dia a dia, a crença de que os laços assim se (re)fazem e que daí vem sabor e sentido à existência. 
É provável que tal vontade de encontro, a cada ano renovada, essa sim, seja aquilo que convoca e reúne. Vejo nesta maravilha simples e luminosa o acontecer da parábola que, acredito, espera e convoca a humanidade inteira, aquela humanidade que, uma vez rompidas as cadeias e derrubados os muros, se torne de facto, numa família humana.
Para isso, há que ir vencendo “os demónios do mutismo e da surdez”, a que aludiu José Augusto Mourão, o académico, poeta e frade dominicano que este ano deixou de connosco se reunir.

(Texto publicado na edição de hoje do jornal digital Página 1, da Renascença) .

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