quarta-feira, 31 de março de 2010

A maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos

(Ilustração: Marc Chagall, A Crucifixão Branca, 1938)

O texto a que o anterior post faz referência está no site do Público; como corresponde a uma sintese de vários debates sobre a questão dos abusos sexuais por parte de membros do clero fica agora aqui também à disposiçao dos leitores do Religionline. Mas devo chamar a atenção também para o post anterior e para as várias questões que ali se levantam. Não há mais margem para continuar a ignorar os debates necessários e a importância da participação dos crentes (e que não sejam os mesmos de sempre). Fica aqui então o texto, que saiu também (numa versão um pouco mais curta) na edição de domingo passado do jornal:

A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do último século. Para encontrar algo de dimensão semelhante, devemos recuar até ao início do século XX, com o anti-modernismo do Papa Pio X. Ou antes, a 1870 e ao Concílio Vaticano I, com o dogma da infalibilidade papal, o cisma dos velho-católicos e o fim dos Estados Pontifícios. Há uma diferença: esta crise atinge um catolicismo universal, ao contrário do de há um século, quando ainda era uma realidade pouco mais que europeia.
Há várias questões à volta deste tema que, de repente, coloca um Papa académico perante um dos mais graves problemas pastorais da Igreja. Será ele capaz de afrontar o problema com a coragem necessária?
Ratzinger é um teólogo notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como Jürgen Habermas ou Paolo Flores d’Arcais (como se pode perceber em Existe Deus?, editado na Pedra Angular). Eleito para um pontificado de transição, cuja marca seria afirmar a importância do facto cristão no diálogo multicultural contemporâneo, Bento XVI tem o desafio de “limpar a Igreja” da sua sujidade, como ele próprio afirmou na Via-Sacra de Sexta-Feira Santa de 2005, poucos dias antes da morte de João Paulo II.

1. Esta crise, como diz o étimo da palavra, pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação entre catolicismo e sexualidade – que o teólogo Hans Küng definiu como uma “relação crispada”. Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O celibato como opção voluntária pode ser dedicação extraordinária a uma comunidade. Como disciplina obrigatória (com excepções nas Igrejas Católicas orientais ligadas a Roma e, agora, com os anglicanos que decidiram aderir ao catolicismo), poderá ser revisto.
É certo que a esmagadora maioria de casos de abusos acontece com pais e familiares próximos das crianças. Como escrevia o Papa na carta aos católicos irlandeses, a pedofilia não é um problema que se restringe aquele país nem à Igreja Católica. Bem pelo contrário. Mas encarar a questão da sexualidade significa afrontar, desde logo, a formação nos seminários, tantas vezes castradora de afectos. E que é uma das causas profundas da pedofilia entre membros do clero.
A Igreja tem, na sua base bíblica e evangélica, uma fonte harmónica e integral que séculos de moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem muitos católicos, ela tão pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é sobretudo uma proposta de relação – do ser humano com Deus e entre os seres humanos como imagem de Deus.
Aqui reside uma primeira dificuldade no exercício que a Igreja terá de fazer: muitos responsáveis católicos insistem numa abordagem dualista, legalista e pecaminosa (numa perspectiva greco-romana) da sexualidade. E que tem sido geradora de hipocrisias.

2. A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a doutrina católica olha a contracepção – e o preservativo, nomeadamente. Há quatro décadas, a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos “artificiais” de planeamento familiar, apenas porque alguns cardeais da Cúria Romana não aceitavam a mudança doutrinal proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais.
Se o Papa Paulo VI (que encarava a possibilidade de mudar a posição oficial) não tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu doutrinal (mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres comprometidos na luta contra a sida, por exemplo). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.
Esta relação difícil do catolicismo oficial com a sexualidade tem manifestações visíveis como os abusos sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, de quem se sabe que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua identidade, foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente.
A instituição por ele fundada é exemplo dos grupos católicos que hoje, na Igreja, insistem na perspectiva moralista e para os quais a vida só importa quando se fala de aborto, preservativo ou homossexualidade.
Não é de estranhar que mais se condene quem mais moralismo apregoa e acaba por ter tantos pecados (ou crimes) no seu interior. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os seus filhos a responsáveis da Igreja eram, em grande parte, membros da própria comunidade cristã. Para elas, o sentimento de terem sido traídas por aqueles em quem confiavam é esmagador.

3. A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta que escreveu aos irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado “por vezes gravemente”. Seria estranho que o Papa tivesse escrito o que escreveu, se tivesse telhados de vidro. De outra forma, estaria agora sob escrutínio e sem autoridade perante os seus “irmãos bispos”.
Pode haver aqui duas coisas diferentes. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Joseph Ratzinger conhecia, obviamente, vários casos. Mas pode ser forçado dizer que os encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo “New York Times” esta semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que abusou de 200 crianças – tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger só conheceu duas décadas depois dos factos.
O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos, não escreveu, ao contrário do que muita ignorância afirma por aí), que defendia o secretismo, foi depois substituído em 2001, não para prosseguir a mesma orientação, mas para dar um passo em frente: o de obrigar os bispos a comunicar os casos de pedofilia ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta destes casos, quando a questão já era um escândalo nos Estados Unidos (dois anos depois, João Paulo II chamaria vários bispos dos EUA para enfrentar a crise, pela primeira vez, de forma dramática). Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso poderá aclarar de vez a sua quota-parte de responsabilidade – isso mesmo já foi pedido há dias pelo “National Catholic Repórter”.

4. O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal até há três ou quatro décadas – o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.
Durante séculos, a Igreja Católica entendeu-se como sociedade perfeita, sem necessidade de instâncias civis: tinha os seus tribunais, as suas penas, chegou a ter as suas prisões.
Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja Católica do que com outros. E desproporcional: dá-se sempre mais dimensão aos escândalos do que aos caminhos de solução ou aos resultados, omite-se que o fenómeno atinge uma pequeníssima minoria do clero (embora bastasse um caso para que fosse grave). Sabe-se que os números aparecidos na Alemanha nas últimas semanas são resultado do trabalho iniciado pela Conferência Episcopal quando surgiram os casos nos Estados Unidos – mas isto também quase não é dito.
Mas desde 1990 há uma avalanche de casos. O que se passou na Irlanda, que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo que ele começou. Em 1993, os bispos do Canadá publicaram um extenso documento com uma reflexão profunda sobre o tema e propostas de solução – que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido em outros países.
Por isso não se entende a lamentável e infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins: a Igreja é pela “tolerância zero”, mas não lava a “roupa suja” em público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública é “vital” para a Igreja. Entenda-se, portanto, que a lavagem de “roupa suja” em público mais não é que uma desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que se chegou aqui.

5. A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que a crise continuará a revelar mais casos. Como em todas as histórias, percebe-se que também há interessados em atingir a credibilidade da Igreja. Mas esta tem que ser a primeira a reflectir o porquê dessa aversão e a procurar razões no seu interior – uma atitude própria desta Semana Santa que os cristãos hoje começam a viver. O cerco à volta de Ratzinger também continuará. Será, por isso, um Papa ferido aquele que virá a Portugal. Talvez rodeado por grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos “ataques” – já correm textos nesse sentido na Internet, em blogues, em mails…
Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da honra da instituição que levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida nesta crise. Os cristãos chamam a esse acontecimento ressurreição. E celebram-na no próximo domingo.

segunda-feira, 29 de março de 2010

"Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar"

O escândalo dos abusos sexuais por parte do clero e do modo como alguma hierarquia tem lidado com este tipo de casos já foi considerado o pior dos últimos cem anos. Será preciso mais recuo temporal para fazer tal avaliação, mas não parece haver dúvidas que há aqui algo de muito sério e grave e que muita coisa vai depender do modo como a Igreja lhe responde.
Não restam para mim dúvidas de que, em casos desta natureza, há quem se delicie em ver a Igreja a sangrar. E tomara a esses que não recuperasse dos golpes. A realidade talvez não lhes faça a vontade, porque o bom senso aconselha a distinguir o que não pode ser confundido. Também neste caso, não se pode tomar a nuvem por Juno.
Mas que a Igreja se põe a jeito, lá isso põe. Desde logo por pretender que estes são casos individuais, de "pecadores" que traíram a sua fé e esqueceram a doutrina. O número de casos e a extensão do fenómeno aí estão para mostrar que não é assim.
Mal iríamos se a resposta se limitasse a uma espécie de agravamento do regime disciplinar. Tenho para mim que se torna fundamental reflectir, ao menos sobre estes quatro pontos:
  • - Os direitos e a dignidade das vítimas, nomeadamente quando crianças pequenas e, maxime, quando portadoras de deficiência;
  • - a política do segredo e do encobrimento, confundida com serviço à Igreja, e que mais não é,neste tipo de casos, do que protecção da ilegalidade e do crime;
  • - o lugar e a dignidade da sexualidade e o papel do seu exercício saudável e responsável numa vida equilibrada, por parte de todos os cristãos, sejam clérigos ou não;
  • - a promoção e participação num debate mais largo, envolvendo diferentes instituições sociais que se confrontam com o problema dos abusos sexuais.
Da reflexão e do debate abertos é necessário tirar ilações. Que envolvem toda a Igreja, desde o mais humilde dos seus membros até ao papa. Não adianta sacudir a água do capote, esperar que a tempestade passe, contrapor que estão a atacar a Igreja e o papa. Tudo isso é, no fundo, desculpa de mau pagador.
Não é coisa pouca o que está em jogo. É "apenas" a credibilidade.
Em linguagem evangélica: se o sal perder a força, é melhor ser deitado fora e ser pisado pelos homens (Mt 5.13b).

sábado, 27 de março de 2010

Anselmo Borges escreve sobre "a pedofilia na Igreja Católica"

Na semana passada, fui abordado por vários jornalistas sobre a calamidade dos padres pedófilos. Que achava? A resposta saía espontânea: "Uma vergonha." Aliás, no sábado, apareceu, finalmente, a Carta do Papa, na qual manifestava isso mesmo: "vergonha", "remorso", partilha no "pavor e sensação de traição".

O pior, no meio deste imenso escândalo, foi a muralha de silêncio, erguida por quem tinha a obrigação primeira de defender as vítimas. Afinal, apenas deslocavam os abusadores, que, noutros lugares, continuavam a tragédia. Ler mais aqui.

"Circunstâncias extraordinárias requerem respostas extraordinárias"

A revista norte-americana National Catholic Reporter, em editorial publicado ontem no seu site, considera que o papa Bento XVI deveria explicar-se e esclarecer todas as dúvidas relativamente ao seu papel no lidar, enquanto responsável da Igreja, com casos de pedofilia de membros do clero.
"O Santo Padre deve responder directamente, num forum credível, a questões acerca do papel que desempenhou como arcebispo de Munique (1977-82), como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1982-2005) e como papa (desde 2005 até ao presente) na (má) gestão da crise sobre abusos sexuais de clérigos", escreve o editorial.
O pedido é feito - acrescenta a posição - "não primariamente enquanto jornalistas que procuram a notícia, mas como católicos que entendem que circunstâncias extraordinárias requerem respostas extraordinárias".
Esta tomada de posição segue-se a notícias dos últimos dois dias do diário the The New York Times, segundo as quais indiciadoras de que o papa dificilmente poderia não ter sido minimamente informado da gravidade de alguns casos, quer nos Estados Unidos da América (enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé) quer antes, na Alemanha (enquanto arcebispo de Munique). Recorde-se que o Vaticano reagiu a estas notícias considerando-as mais uma etapa de "ataque ignóbil" à figura do papa.

"Tens de ter força!"

Um dos problemas do cancro e de outras doenças debilitantes é o conselho que damos aos doentes: "Tens de ter força!". Não percebo este conselho que mais parece uma ordem. Que quer dizer? Que se deve criar mais força? Que se deve manter a pouca força com que se fica?

O cancro enfraquece - a fadiga do cancro é uma consequência inevitável. O cancro cansa. Reduz a força. Não tira a vontade de viver. Mas reduz a energia para fazer os sacrifícios que é preciso fazer para melhorar as hipóteses de sobreviver.

Os doentes sabem que têm de empregar as poucas forças que lhe restam, assim como sabem que ajuda ser-se positivo: que o estado psicológico influencia o aproveitamento clínico. Sabem. A sério. Não é preciso estar sempre a recomendar que tenham força e que sejam positivos.

É difícil para os doentes enfraquecidos que olham a morte de frente terem força e serem positivos. A tendência deles é para se sentirem tão fracos como estão e tão negativos como se sentem. Como os conselhos, apesar de parecerem ordens nazis, comandando os coxos a correr maratonas, são bem-intencionados e amigos, não podem ser ocos. São estúpidos, mas devem dizer alguma coisa.

Acho que, no fundo, apelam a eles próprios. São os fortes à volta do fraco que têm de usar a força deles para ajudá-lo. São os capazes de ser positivos que têm de animá-lo.

Afinal são auto-exortações. Parecem conselhos amigos, que ficam por ali. Mas são incumbências que só a nós dizem respeito.


Miguel Esteves Cardoso, Público, 27.3.2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

Assassinado há 30 anos

Óscar Arnulfo Romero Galdámez, arcebispo de S. Salvador, foi assassinado com um tiro no coração há 30 anos quando celebrava missa. O tiro foi disparado por atirador de elite do exército salvadorenho. No dia anterior, na homilia dominical, D. Óscar Romero dissera aos soldados: “Em nome de Deus, em nome do povo sofredor, peço-vos, imploro-vos, ordeno-vos em nome de Deus: parai a repressão”.

domingo, 21 de março de 2010

Bento Domingues: A poética do amor e a prosa da justiça

Texto de Bento Domingues no "Público" de hoje. "O amor de pura gratuidade situa-se na órbita do divino". "Deus não faz negócio com os seus dons". "S. Francisco de Assis é sempre apontado como o grande poeta cristão. Há outros, mas o maior de todos é português: S. João de Deus. Cada um descubra porquê".

domingo, 14 de março de 2010

E se as mulheres fizessem greve na Igreja?

"Mulheres e Teologia" foi o tema de um colóquio levado a cabo na Universidade de Coimbra, há duas semanas, e promovido pelo Instituto de Estudos Feministas com a colaboração do Instituto Universitário Justiça e Paz, da diocese de Coimbra. O debate contou com a participação de sete mulheres, oriundas do universo do catolicismo: Adriana Bebiano, Teresa Toldy, Fernanda Henriques, Maria Carlos Ramos, Maria Julieta Dias, Laura Ferreira dos Santos, Isabel Allegro Magalhães; e ainda os teólogos Bento Domingues e Anselmo Borges. Na TSF, Manuel Vilas Boas deu voz às e aos intervenientes e o programa, com o título "E se as mulheres fizessem greve na Igreja?", passou neste fim de semana. O programa pode ser ouvido aqui.
(Foto: grupo de freiras em Belém, em Maio de 2009, na missa com o Papa Bento XVI)

Bento Domingues: Uma parábola docemente inquietante

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulheres e Teologia (no Dia Internacional da Mulher)

Na sua crónica de sábado passado, Anselmo Borges fala das mulheres e da teologia, a propósito do recente colóquio sobre esse tema, em Coimbra. Excertos de um texto que pode ser lido na íntegra aqui (foto reproduzida daqui):

Celebra-se [a] 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, lembrando as suas lutas de emancipação. As religiões, na sua ambiguidade, foram e podem ser factores de libertação. De facto, a sua influência neste domínio foi e é sobretudo negativa e opressora. Que impressão causa, por exemplo, pensar na possibilidade de uma mulher à frente da Igreja como Papa?

Mas há iniciativas, inimagináveis há poucos anos. Assim, no passado dia 26 de Fevereiro, a partir de uma colaboração da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no quadro do Mestrado e Doutoramento em Estudos Feministas, integrando também um seminário sobre "Mulheres e Religiões", do Instituto Universitário Justiça e Paz e do Centro de Estudos Sociais, teve lugar na Faculdade de Letras um Colóquio subordinado ao tema "Mulheres e Teologia", com cerca de 170 participantes.

Pela mão das mulheres, a teologia "regressou" à Universidade de Coimbra, na Faculdade de Letras, que substituiu, vai para um século, a Faculdade de Teologia. Como sublinhou o seu director, Carlos André, a Faculdade de Letras, que deveria antes chamar-se Faculdade de Humanidades, pois pergunta pelo Humanum, na sua raiz, nas suas múltiplas dimensões, no seu sentido, não pode ignorar a reflexão sobre o Divino. (...)

"Teologia e Ética", no seu desafio mútuo, foi a problemática analisada por Teresa Toldy, da Universidade Fernando Pessoa. Pergunta essencial: Que utilidade tem a teologia para uma vida melhor e a felicidade humana, objectivo também da ética? Esta questão tem um recorte específico, quando relacionada com as realidades e problemáticas das mulheres, tanto no domínio ético como no teológico.

"Dizer o Indizível no feminino" foi o tema de Isabel Allegro de Magalhães, da Universidade Nova de Lisboa. No quadro da obsessão masculina de a tudo dar nome, a quase totalidade das teologias abraçou o racionalismo, esquecendo que Deus é o Absoluto Indizível. É tarefa das teologias feministas contribuir para a aproximação da teologia negativa e dos grandes místicos de todas as religiões. "O que aí encontramos é algo afim a uma teologia contemplativa ou a expressão de uma religiosidade nova, decorrente da consciência de uma total inacessibilidade do Mistério."

(Neste Dia Internacional da Mulher, este post é dedicado às mulheres dos que fazemos este blogue: Cristina, Elsa, Isabel e em memória da Sílvia)

quinta-feira, 4 de março de 2010

(Foto: Lima Duarte no filme de Manoel d'Oliveira, Palavra e Utopia)

Esta noite, na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, o actor Luís Miguel Cintra dirá o Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, do Padre António Vieira. Esta iniciativa insere-se num ciclo de actividades propostos pela Paróquia de Santa Isabel e Capela do Rato, que continuará nos próximos dias 11 e 18, com duas "Conversas à Capela", sobre o tema "Deus: questão para Crentes e não-Crentes". Na primeira, participam Alberto Vaz da Silva, Pedro Tamen e Ricardo Araújo Pereira, com moderação de Laurinda Alves. Na segunda, a conversa é feita com Assunção Cristas, Henrique Raposo e Pedro Adão e Silva, com João Wengorovius Meneses a moderar. Todas as actividades são às 21h30.


Para aguçar o apetite para esta noite, fica aqui o início do sermão, proferido em 1670, na Igreja de S. António dos Portugueses, em Roma:

Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris (Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter)

O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.

Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar.

Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem‑na os olhos, a presente não a alcança o entendimento.

E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura.

O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem‑no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.

Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó.

Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder‑vos‑ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente.

De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es?

Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es?

Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz‑me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional.

O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente?

O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo?

O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional?

Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. (...)

Em que cuidamos, e em que não cuidamos?

Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte.

Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz. E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma?

(...) E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando‑vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva?

Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo!
(O texto completo do sermão está aqui)