quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A véspera de Natal

Na véspera do Natal é hábito armar o presépio. A figuração do estábulo é uma prática franciscana sobre que se depositaram sedimentos importados de cultos estranhos e pagãos, tais como o da árvore e do fogo. Que sabe disso o burguês que encomenda o pinheiro e compra o peru e as velas dando meia volta ao interruptor? Pouco ou nada. Sorri ao Menino deitado nas palhinhas de ráfia, enternece-se ao brilho da estrela de lata ou tarlatana. Lembra-se de Jesus, sabe que era o Filho de Deus; para a cristandade, o próprio Deus humanado. Se tem umas tinturas de história agnóstica, – disto de saber e ouvir coisas, – disseram-lhe que houve outros homens extraordinários, Buda, Sócrates, talvez Spinoza, – pessoas, em todo o caso, austeras, virtuosas, abnegadas, – mas que aquele é como que o pai dos novos tempos, o pregador exemplar da bondade e do sacrifício, etc.
De tudo isto se inteira o nosso contemporâneo vaga e confusamente, num plano para lá do cotidiano e do sensato, e que por isso mesmo – vá lá… – pode romper a trama das suas preocupações substanciais, do ganhar e do perder, do ter e do melhorar, e instalar-se ali assim sob a forma das coisas confortáveis e bonitas. Um Menino em palha escolhida, entre luzes bem dispostas, é uma coisa bonita. Dá-se de boa vontade umas calças velhas para a filha ou a mulher entregarem ao maltrapilho que encontrarem à porta encolhido, e que trajava parecido com o pastorito de barro iluminado no presépio. Um dia não são dias, e estas coisas dispõem bem, são antigas; vá lá…
A vida está cheia destes resíduos formais e habituais da sociabilidade: práticas que perderam para a maioria dos homens a sua significação profunda, ou que só recobram sentido momentaneamente e à superfície. O sedimento dos actos religiosos formais é dos mais espessos e resistentes à revivificação verdadeira. Os próprios religiosos convictos têm dificuldade em praticá-los com plenitude de intenção e de consciência. Em parte porque as situações que lhes deram origem mudaram; em parte porque a habituação, mecanizando-os, como lhes evapora a alma. É certo que o automatismo das práticas religiosas é um método psicológico de aquisição da religiosidade autêntica. A prece tem um valor material de propiciação e de depuramento, em certa medida independente da vivência vigilante do que se ora. Pascal reduzia os meios de crer a três: a razão, o costume, a inspiração. E diz: “Depositar a esperança nas formalidades é ser supersticioso; mas não querer submeter-se-lhes é ser soberbo.”

Vitorino Nemésio
[O Retrato do Semeador. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000. 2.ª ed.]

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