quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Crucificado

1. De novo se inicia uma onda de debates que parece querer retomar mais um episódio da novela global das mesquinhos tentativas de destruição da memória cristã do ocidente. Evocando retorcidas razões, cujo fundamento, à custa de tão encoberto, parece evidente, pretende-se de novo, agora a um nível dito europeu, eliminar símbolos religiosos (cristãos) de espaços públicos, de que sobressai, evidentemente, a imagem do crucifixo, que parece ser aquela que provoca mais incómodos – e como poderia não ser assim?
Da minha parte, não quero aqui debater razões de peso de ordem histórico-sociológica. Prefiro concentrar-me numa dimensão mais teológica, com resultados culturais que me parecem de monta e que, normalmente, não são abertamente discutidos – estratégia que faz parte do tal encobrimento dos fundamentos. De qualquer modo e a respeito da questão sócio-cultural, não resisto a deixar ao leitor duas citações de dois actuais (ainda) «mestres da suspeita», que sobre o tema me parecem insuspeitos, pois nem são crentes nem de «direita».
Num texto de Jürgen Habermas, sociólogo neo-marxista de Frankfurt, podemos ler: “Não acredito que nós, europeus, pudéssemos compreender seriamente conceitos como moralidade, pessoa, individualidade, liberdade e emancipação sem absorvermos a substância do pensamento histórico-salvífico de origem judaico cristã… Sem a mediação socializante… das grandes religiões mundiais, este potencial semântico poderá um dia tornar-se inacessível” (Nachmetaphysisches Denken).
Num outro texto, do conhecido sociólogo francês Alain Touraine, podemos também ler: “O ensino das religiões, das suas crenças como da sua história, não é certamente um atentado à laicidade; pelo contrário, é o silêncio imposto sobre as realidades religiosas que é um atentado inaceitável ao espírito de objectividade e de verdade de que a escola laica se reclama” (Pourrons-nous vivre ensemble?). Quem tiver ouvidos para ouvir… e inteligência sócio-histórica para compreender, que medite sobre o que eles, herdeiros da secularização, já conseguem dizer.

2. Mas a questão em debate pode assumir, ainda, outra vertente – ou outra face da mesma moeda. Afinal, o que pode significar o crucifixo?
Não se trata, para que sejamos claros, de um símbolo de marca religiosa, como os actuais símbolos de markting, de clube, ou mesmo de partido político. Se assim fosse, na actual proliferação dos «clubes» religiosos, seria legítimo não privilegiar o markting de nenhum – mesmo que a maioria esmagadora de cristãos, na sociedade portuguesa o pudesse, de algum modo, legitimar.
Mas o crucifixo, enquanto memória simbólica e imagética do Crucificado e de tudo o que Ele significa para o ser humano, pretende-se um símbolo universal. Por isso, interpela e dirige-se a todos, não apenas aos cristãos.
Nele denuncia-se, antes de mais, toda a violência vitimadora de inocentes, sejam eles quem forem: independentemente da raça, sexo, nação, religião, estado de vida, perfeição, idade, etc. Nele revela-se, para além disso, que Deus – neste caso, o Deus em que acreditam os cristãos – é solidário com essas vítimas de injustiça e que não se encontra do lado dos poderosos vitimadores. Nele anuncia-se, portanto, que, se assim é, essa vitimação e todo o sofrimento daí resultante não terão a última palavra sobre o destino do ser humano, mas que se realizará a promessa da vitória da justiça sobre a injustiça. Nele manifesta-se, para nós, que o caminho dessa vitória é, precisamente, o da solidariedade, sofredora, com todas as vítimas que, à nossa volta, nos interpelam com o seu grito – e não o trajecto vitorioso do herói que, exaltado culturalmente, rasga o caminho da vitória à custa da vitimação dos outros (a propósito, não resisto a aconselhar o leitor a que aprofunde o assunto, lendo sobretudo os textos de Johann Baptist Metz, sobre o sofrimento humano, e os textos de René Girard, sobre a violência e a vitimação – é pena que esses pensadores fundamentais não sejam inseridos no debate...).
Será que, numa cultura que se torna progressivamente apática ou insensível ao sofrimento das vítimas inocentes, o crucifixo se tornou incómodo e indesejado? Será que, numa sociedade que pretende esconder a dura realidade da injustiça e de outros modos de sofrimento, através de neutralização mediática e consumista, o crucifixo continua a ser – como sempre o foi – sinal de contradição e de denúncia da auto-satisfação em que nos pretendemos?
Se assim é e se, por essa razão, eliminarem o crucifixo da nossa paisagem e da nossa memória, cabe aos cristãos assumir profeticamente a mediação da voz silenciosa do Crucificado, anunciando corajosamente que o ser humano não se deixar neutralizar assim tão facilmente.

João Duque
Director Adjunto da Faculdade de Teologia – Núcleo de Braga
[texto publicado no site da diocese de Braga]

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