sexta-feira, 28 de janeiro de 2005

Maria de Lourdes (Pintasilgo)
Por EDUARDO LOURENÇO
Público, 28 de Janeiro de 2005

Há pouco mais de meio ano, num país submerso por uma maré futebolistica sem precedentes, e um fervor patriótico mediático raro, morria e saía da cena politica e cultural portuguesa, a antiga Primeira Ministra, Maria de Lurdes Pintasilgo. A sua morte não passou, nem podia ter passado despercebida. Mas o contexto passional e euforizante do Euro 2004, "privatizou", em excesso, um acontecimento que, em outras circunstâncias, teria conhecido um outro eco.
Neste momento, a sua terra natal, Abrantes, recorda-a e presta-lhe a homenagem que o seu passado de militante católica de sério e coerente empenhamento social, o seu papel como dinamizadora cultural, sem falar do carisma politico que lhe permitiu ser a primeira mulher portuguesa a ocupar o cargo de Primeiro Ministro, naturalmente reclamada e merece.
Maria de Lurdes foi durante grande parte da sua vida desde jovem, um dos rostos de Portugal no mundo. Já não era Poder, como tão tristemente se diz, quando nos deixou e embora o seu combate cívico e espiritual se inscrevesse num horizonte mais vasto do que o da Politica, o Poder, e mesmo as suas seduções, não lhe eram estranhas. Aceitou-o ou pretendeu-o como serviço, apaixonadamente, convicta de que assim podia contribuir para alterar ou, pelo menos, melhorar "a ordem das coisas". Vinda do antigo Regime, daquilo em que ele se reclamava da famosa doutrina social da Igreja, a militante tomou a sério essa utopia do antigo sistema, muitas vezes traída ou negada na prática sobretudo na versão virtualmente dela. Essa espécie de paradoxal gauchismo, nem sempre foi bem compreendido.
A sua condição de mulher ofuscava - quer antes, quer sobretudo depois do 25 de Abril - a classe social a que pertencia, na versão tradicional se não tradicionalista das suas práticas sociais e éticas. Quando aceitou, pela mão do general Eanes, o cargo de Primeiro Ministro, uma parte do seu eleitorado "natural" e não só ele bem lho fez sentir. E ainda mais quando, com grande risco politico, ela se candidatou ao lugar de Presidente da Republica.
Maria de Lurdes é uma figura complexa, a sua história fez parte integrante do nosso Portugal durante o ultimo meio século e da história do mundo que nos cercou. Estudando-a e não apenas lembrando-a como é justo, se verá como essa história, aparentemente dividida ao meio pela Revolução de Abril a que aderiu e de que foi mesmo figura emblemática, não é tão "maniqueista", como, em geral é vivida em termos de memória, seja ela politica ou cultural.
Não só os seus amigos e admiradores farão esse "dever de memória" como os seus adversários e, naturalmente, os nossos historiadores da contemporaniedade fará parte das complicadas relações entre a fraca tradição social do nosso catolicismo e as correntes politicas e culturais que, ao mesmo tempo, encarnam aspirações análogas fora da referência religiosa ou opondo-se a elas. A nossa curiosidade pelo passado - salvo a titulo mítico ou antes, mitificado - é notoriamente escassa. Começa a cobrar algum relevo, sobretudo em relação aos contemporâneos quando se interessa "pelas figuras" como fez Oliveira Martins para a "ínclita geração". Mas tudo isso é pouco comparado com a verdadeira paixão da historiografia inglesa ou francesa pelos seus ou alheios "homens ou mulheres ilustres". Maria de Lourdes foi no seu e nosso tempo português, uma mulher ilustre.
A discrição com que o seu desaparecimento, há apenas sete meses, foi vivida não está à altura do que ela é e representa. Descrição oficial e discrição - essa sim, dolorosa - da instância institucional e do coração a que estava ligada pela sua educação, pela sua fé e pelo seu entusiasmo. Excessivo?

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