terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Miklos Fehér

Diante do espectáculo da morte
- da morte dada em espectáculo -
ainda há lugar para descobrir
... a morte.
Impossível dissimular,
fazer de conta.

Como um raio, tudo se desvanece
e fica ela, desafiante, procadora,
embrulhada num sorriso doce.

De súbito, quem se agredia abraça-se,
quem delimitava os campos
descobre que um só campo existe,
comum.

Repentinamente,
é o acordar para a fragilidade,
a membrana fina
que separa de um além misterioso e inelutável,
para o sem-sentido de tanta coisa,
de tanta tralha
com que carregamos os dias.

Esta vida que se desvela,
e que nos descobre;
esta terra comum de quem se descobre
despido e solidário
não será o sinal
de que "a vida não acaba,
apenas se transforma"?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

A Igreja na Cidade
o poder do encantamento e a força do testemunho


Eduardo Jorge Madureira Lopes
in Diário do Minho, 25.1.2004


Os lugares comuns parecem ter consagrado ad aeternum a identidade católica de Braga como se duas ou três designações religiosas — a “cidade dos arcebispos”, a “Roma portuguesa”... — fossem o bastante para, definitivamente, pôr a salvo a alma da cidade. Também os pouco abundantes olhares literários sobre Braga repararam na religiosidade da terra, que alguns autores julgaram mais dada à devoção do que ao amor ao próximo. Há, claro, diferenças entre a imagem que é devolvida pela reputação e a que é mostrada pelo espelho. Sucede que o espelho de hoje já não reflecte a imagem da cidade católica, como observou D. Jorge Ortiga, durante uma tertúlia realizada em Dezembro num antigo café do centro histórico.

É difícil dizer algo de novo sobre o que deve ser a Igreja em Braga nos dias de hoje. A Igreja, neste ou noutro lugar, neste ou noutro tempo, se é permitido usar o que S. Lucas disse num contexto algo diferente, “são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”. A Igreja é um convite a um testemunho. Um convite endereçado todos os dias a cada um. Enzo Bianchi, prior da comunidade de Bose, em Itália, um dos mais importantes centros de espiritualidade da Europa, recorda que “a humanidade precisa mais de testemunhos do que de advogados de uma verdade em relação à qual o máximo a que podemos aspirar é ser pobres mendicantes”.

Os “advogados” sobrecarregam de palavras um mundo com pouca paciência para escutar, um mundo que precisa menos de lições de moral e mais de testemunhos. Só estes, como o padre António Vieira tão bem explicou, operam milagres. E “o milagre que corresponderia aos interesses da nossa época, o milagre de que a nossa época tem necessidade e ao qual seria sensível, julgo que seria o milagre do amor e da fraternidade dos cristãos”, afirma o padre Louis Evely. Uma coisa assim ajudaria a mudar o mundo: “o mundo converteu-se ao princípio, quando se dizia dos cristãos: ‘Vede como eles se amam!’”.

A Igreja é um anteprojecto do mundo (de um mundo diferente do que quer que tudo e que todos sejam uma mercadoria que se compra e que se vende). Ela não é, como alguns parecem julgar, uma cadeia de distribuição de sacramentos ou uma repartição (uma burocracia auto-suficiente) onde alguns funcionários mal-humorados atendem os que pretendem subscrever a bom preço Planos de Poupança Eternidade. Respeitando a liberdade de cada um e promovendo espaços de partilha, a Igreja deve, portanto, ir ao encontro do mundo para lhe apresentar uma maneira de viver diferente da que se está a querer impor por todo o lado. Desse modo, será o sal da terra e a luz do mundo.

É verdade que “não basta — ainda que seja necessário — organizar a política e a economia de forma a que os homens vivam e sejam felizes”, escreve o cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, que considera que “é necessário propor-lhes uma visão deles próprios e do futuro, capaz de lhes oferecer um horizonte de pensamento e a sua parte de sonho. A beleza tem a graça secreta de fazer despertar o amor, como a centelha que faz começar o fogo, cuja chama ilumina e nos aquece. A inteligência não se extingue na sua função crítica. E as religiões murcham mais por perderem a sua capacidade de maravilhar do que pela dificuldade de proporem dogmas. A pior coisa que pode acontecer a uma notícia não é parecer desagradável, mas sim parecer maçadora”.

E, neste tempo saturado de informação, é essencial reencontrar a capacidade de maravilhar (há obras de arte que mantêm essa capacidade intacta, como é o caso da Paixão segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach. Depois de ouvir esta obra, dirigida por Nikolaus Harnoncourt, o escritor Antonio Muñoz Molina compreendeu “a imperiosa urgência de um testemunho”). O poder do encantamento e a força do testemunho — não as palavras que vão sendo trituradas por cansados funcionários de Deus — ajudarão a certificar a proposta de sentido que está na Palavra de Vida, na Boa Nova que Jesus Cristo nos legou.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

A Igreja na Cidade como Comum Habitação
por LUÍS SOARES BARBOSA [docente na Universidade do Minho]

"1. Há algum tempo atrás, numa cidade estranha, muito longe de casa, um frio cortante nas ruas desconhecidas, uma igreja onde entrei por acaso. Um pequeno grupo celebra nesse fim de tarde de domingo. Há uma leitura de Marcos. Uma senhora, coordenadora do grupo bíblico, faz um comentário breve. Há ainda um salmo (recordo: pela tua luz veremos a luz), um poema de Milosz. Há, sobretudo, silêncio. Uma enorme contenção de gestos e de sons. No final a partilha do pão e do vinho continua noutro canto da igreja. Uma cafeteira de chá forte e quente, as conversas animam-se. Estava-se na véspera da ocupação do Iraque, nesses meses em que a Europa viveu talvez as maiores manifestações de sempre contra a guerra e o travo amargo da impotência.
Alguma coisa, ao longo dessa hora, acabou por diluir a espessura do quotidiano que transporto e que, tantas vezes, o olhar me tolda. Pensei: se não fossem as igrejas onde nos encontraríamos? Onde, entre estranhos, nos sentiríamos próximos? Onde poderíamos chegar e partir, menos solitários, contudo? Partilhar o correr dos dias, perplexidades e inquietações, até mesmo aquilo que não é útil nem preciso?
Uma casa comum, dispersa e habitada. Onde coexistem, como nas casas da infância, amplas janelas abertas sobre o vento, doce de abóbora na despensa e velhos tiques de primas afastadas. Permitam-me, então, que sublinhe algumas preocupações por esta casa que habitamos. (...)

Continuação: aqui.

Reduce papacy’s power, says Daneels.
A senior cardinal widely tipped as a possible successor to Pope John Paul has suggested the power of the papacy should be reduced and that there should be less focus on the person of the Pope.
Cardinal Godfried Danneels, Archbishop of Malines-Brussels, told the Rome paper 30 Giorni that a “moment of calm” was needed in the Church, and that in the third millennium a different style was called for after the Vatican’s “centralised control” of recent centuries.

Cardinal Danneels, who is widely seen as the leader of the “reform party” at the next conclave, described the Pope as “a real charismatic personality who attracts attention”. But the identification between the Pope’s role and personality was not “a good thing”, he said. He said a retirement for an “ailing and ageing pope” – an option the Pope has firmly rejected – could help to break the link. But he made it clear that it was not his wish or intention to weaken the papacy.

Cardinal Danneels also suggested that bishops’ synods should be less formal and more open, and that the “endless stream of paper” from the Curia should be cut back. “We are deluged with documents, instructions and manuals”, he lamented.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2004

Não está ninguém em nenhum lado

Gomes Canotilho, em entrevista ao Expresso (27.12.2003):
'Há um fenómeno de deserção. Não está ninguém em nenhum lado. Ninguém parece ter interesse, sabemos tudo, não temos nada a aprender com os outros, e o que é certo é que depois não há uma participação cívica e crítica. E a mim preocupa-me, mas confesso que não sei como mudamos isto.'
Feliz Natal

"Senhor, que os meus pés busquem os teus caminhos
e te procurem recém-nascido nos lugares obscuros,
nas ruínas em que buscas abrigo para nascer dentro de mim.

Que as minhas mãos se inquietem na noite em que te procuro
e busquem em ti a vida que me falta; que eu seja em ti
as mãos que se entregam à graça, que se emprestam à vida
na força do arado, na terra em que virás ceifar o trigo no dia
da colheita, tu que és semente a germinar em mim.

Que os meus olhos se emprestem à tua presença,
para que sejam vastos os meus horizontes e rasgados
os caminhos que te preparo, e fértil a terra em que me dou
para que venhas, porque eu sou um lugar obscuro e em ruínas
mas sei que buscas um abrigo para nascer dentro de mim.

Inédito. José Rui Teixeira."