terça-feira, 30 de setembro de 2003

Das palmas e das danças

Manuel Pinto

O papa João Paulo II conhece como ninguém as danças e as palmas nas celebrações. E, o que é mais, dá repetidos sinais de gostar desse modo de celebrar. Tem vindo a crescer, por outro lado, o uso de algumas formas de expressão corporal nas eucaristias. Não é necessário frequentar as igrejas para verificar isso mesmo: basta estar atento às transmissões da missa nos canais televisivos.
De modo que não poderiam deixar de provocar espanto e incredulidade as notícias sobre um esboço de documento que estaria a ser preparado entre congregações do Vaticano, no sentido de identificar e condenar uma lista de abusos litúrgicos e, o que seria ainda mais preocupante, incentivar os cristãos que os testemunhem a denunciá-los à autoridade eclesiástica.
Boa parte dos media gostam imenso deste tipo de notícias, porque vem justificar em cheio o primarismo religioso de muitos jornalistas, que disfarça mal uma profunda ignorância do fenómeno sobre o qual emitem as opiniões mais categóricas. É ver que, com base nos elementos divulgados, quase ninguém procurou responder a perguntas muito simples que poderiam ajudar a compreender o que se está a passar.
Desde logo, estas perguntas básicas: porque é que uma matéria “quente” como esta é filtrada para a revista “Jesus” dos Paulistas italianos? Quais são as congregações envolvidas na elaboração do documento? E, dentro dessas comissões, quem são os protagonistas? E que notícias há sobre a receptividade dos bispos, nas consultas que foram feitas? E quais os problemas reais que o documento pretende tratar? E como sentem e percebem os responsáveis da pastoral da Igreja, e mesmo os cristãos comuns, este assunto? Sobre todos estes pontos é possível inquirir e, em alguns casos, há vasta matéria publicada. Só que isso já não interessa porque desactiva a polémica e o escândalo.
Pela parte que me toca, julgo sensato que a Igreja cuide da dignidade e da qualidade das suas celebrações. Estas não podem ser actos gélidos e entediantes, mas também não é lógico que se transformem em números espanpanantes de show biz, com um mestre de cerimónias à frente. Entendo, por outro lado, que não está resolvida, no interior da Igreja, a tensão entre um ascetismo essencialista e um cuidado com as linguagens, incluindo as do corpo. Há grupos de pressão fortíssimos, que já não acharam graça nenhuma às inovações pós-conciliares, que aproveitam agora a conjuntura para marcar a agenda e determinar o quadro normativo. Quero crer que o bom senso prevalecerá. A divulgação prévia do borrão de texto é, para mim, sinal disso mesmo.
(Crónica no Diário do Minho, 29.09.2003)

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